As Estratégias Sensíveis (Muniz Sodré) - cap 1 e 2

March 20, 2017 | Author: Brifando Produção | Category: N/A
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sodré, Muniz As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política / Muniz Sodré. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2006. ISBN 85.326.3304-8 Bibliografia. 1. Afeto (Psicologia) 2. Comunicação 3. Comunicação de massa 4. Estratégia (Filosofia) 5. Política L Título. 06-0805

CDD-302.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Estratégias sensíveis: Afeto, mídia e política: Sociologia 302.2

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EDITORA VOZES Petrópolis

1 SENTIR, COMUNICAR E COMPREENDER Mídia e comunidade afetiva. As variadas dimensões da sensibilidade contrapostas às da razão na cultura ocidental. Afecção, afeto, emoção e sentimento. Estética ou estesia como campo das manifestações sensíveis. Valor-afeto, capitalismo-mundo, mercado e mídia. Comunicação e compreensibilidade.

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CVamos tomar como ponto de partida a seguinte reflexão de Pemiola: "Parece que é justamente no plano do sentir que a nossa época exerceu o seu poder. Talvez por isso ela possa ser definida como uma época estética: não por ter uma relação privilegiada e direta com as artes, mas essencialmente porque o seu campo estratégico não é o cognitivo, nem o prático, mas o do sentir, o da aisthesis,,3. E nossa questão inicial dispõe-se então na pergunta sobre a possibilidade de existência de uma potência emancipatória na dimensão do sensível, do afetivo ou da desmedida, para além, portanto, dos cânones limitativos da razão instrumental. Isso implica um acordo inicial sobre o significado de "ação emancipatória" como aquela socialmente produtiva e não dominada pela transcendência do poder (por exemplo, uma política que se enuncie originariamente como inassimilável pela ordem socioeconômica vigente, ou então uma ação ampliativa dos direitos civis), para nos perguntarmos em seguida sobre a viabilidade de uma ação dessa ordem no interior de uma realidade específica, a da sociedade dita da comunicação e da informação, sobre a qual pesam as muitas suspeitas intelectuais de não ser muito mais do que uma

3. Perniola, Mario. Do sentir. Presença, 1993, p. 11.

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estrutura voltada para interesses econômico-corporativos imediatos, sem a idealidade de formas originais ou sem a perspectiva de fms ético-políticos. Essas suspeitas são embasadas por toda uma tradição humanista (e intelectualista) de pensamento, segundo a qual um dispositivo que gravite na órbita dita "cultural" deveria reger-se necessariamente por uma teleologia da transcendência da verdade, do sentido e do poder, coincidente com a mais absoluta racionalidade da história. A este respeito, começam a manifestar -se, entretanto, vozes discordantes. Vattimo, por exemplo, aventa a hipótese de que, num processo ideal de emancipação, a comunicação não deveria caminhar no sentido de uma maior verdade de seus conteúdos, e sim no sentido de uma "intensificação de si mesma como fim,,4. De fato, nada nos assegura que a comunicação disponha de uma razão técnico-social capaz de apontar para uma "maior verdade" ou uma finalidade cultural qualquer de seus conteúdos. Já no começo da voga das tecnologias comunicativas, Wittgenstein ironizava: "Homens julgaram que um rei pudesse fazer chover; nós dizemos que isto é contradizer toda experiência. Hoje se julga que o aeroplano, a rádio, etc. são meios de aproximação dos povos e de difusão da cultura'". É que, desde meados dos anos trinta, circulavam em meios acadêmicos juízos de aproximação entre o automóvel, o avião e a televisão, sendo esta última considerada mesmo - a exemplo do psicólogo da arte alemão R. Arnheim - um "veículo do espírito", isto é, um instrumento do mundo das formas da cultura. Mas o que Wittgenstein discute aqui, a propósito do problema da certeza, é a questão da experiência, sustentando não ser ela, e sim uma totalidade de proposições, o fundamento do nosso modo de julgar, que nos leva a crer em alguma coisa. Em sua observação sobre as tecnologias de deslocamento e comunicação, ele desqualifica implicitamente a experiência de sucesso desses meios e sugere um outro fundamento para a crença em sua positividade cultural. É a um outro fundamento que também alude Vattimo, mas, diferentemente de Wittgenstein, buscando transformar a comunicação em ação emancipatória. Seria talvez possível divisar nesta proposição o eco de uma reflexão nietzscheana: "As nossas vivências autênticas não são de modo algum eloqüentes. Não podemos comunicá-Ias mesmo se o quiséssemos. É que

4. Conferência

de abertura do XII Congresso da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação (Compós). Biblioteca Nacional, 04/06/2002. 5. Wittgenstein, L. De Ia certitude. Gallimard, 1976, p. 55.

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lhes falta palavra'". Mas como autenticidade não será certamente o atributo mais adequado para a experiência industrial (logo, economicamente interessada) da comunicação, que hoje se faz pública com poderosos recursos tecnológicos e mercado lógicos, levanta-se a hipótese de um fenômeno que valeria pela pura intensidade performativa de sua mimese, isto é, por uma experiência intensa de apreensão de aspectos da vida, diante da qual o "conteúdo" ou a matéria do acontecimento acaba tomando-se indiferente.'. A célebre fórmula de Marshall McLuhan - "o meio é a mensagem - alinha-se neste mesmo quadro conceitual. Dizer "meio" é dizer "forma". O meio-forma é, em princípio, a tecnologia que, no caso da televisão, consiste no aparato de transmissão e recepção de imagens por meio de recursos analógicos ou digitais. Antes de McLuhan se diria, ao modo do dualismo aristotélico, que essa forma é o envoltório ou o revestimento técnico da matéria constituída pelo vivido sociocultural de um grupo humano. O meio seria veículo de um conteúdo externo a ele, de onde proviria o sentido. Mas quando se admite que "o meio é a mensagem", está-se dizendo que há sentido no próprio meio, logo, que à forma tecnológica equivale ao conteúdo e, portanto, não mais veicula ou transporta conteúdos-mensagens de uma matriz de significações (uma "ideologia") externa ao sistema, já que a própria forma é essa matriz. Tal é o sentido ou o "conteúdo" da tecnologia: uma forma de codificação hegemônica, que intervém culturalmente na vida social, dentro de um novo mundo sensível criado pela reprodução imaterial das coisàs, pelo divórcio entre forma e matéria. Liberadas as pessoas e as coisas de seu peso ou de sua gravidade substancial, tomadas imagens que ensejam uma aproximação fantasmática, a cultura passa a definir-se mais por signos de envolvimento sensorial do que pelo apelo ao racionalismo da representação tradicional, que privilegia a linearidade da escrita. Este novo ordenamento cultural não poderia deixar de atingir o funcionamento do logos clássico. Conseqüentemente, esta hipótese suscita críticas intelectualistas no sentido de que as indústrias da comunicação pode-

6. Nietzsche, F. o crepúsculo dos ídolos. Guimarães, 7. Essa indiferença

1985, p. 102.

é uma realidade histórica palpável e em expansão, possivelmente um dos fatores responsáveis pela crise de credibilidade tanto do jornalismo impresso quanto do oudiovisual, desde os fins do segundo milênio. Ao mesmo tempo em que jornalistas e pesquisadores admitem problemas sérios na autentificação dos acontecimentos, o público-leitor e as audiências de telejornais declinam em países do Centro capitalista internacional, a exemplo dos Estados Unidos. A "verdade" que impulsianou no passado a atividade jornalística dó lugar ao emocionalismo superficial das imagens ou à pura vertigem da velocidade informacional nas redes cibernéticas.

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riam estar destruindo, pela indiferença ao racionalismo conteudístico ou pelo excesso de banalização cultural, toda a ordem representativa clássica. Mas sem este mesmo vezo pessimista, Eco já havia assinalado, duas décadas atrás, a debilidade dos conteúdos da rnídia eletrônica, ao fazer uma distinção entre a recente "neotelevisão" e o primeiro formato geral da tevê, a "paleotelevisão". Dizia ele: "A característica principal da Neotevê é que ela fala (conforme a Paleotevê fazia ou frngia fazer) sempre menos do mundo exterior. Ela fala de si mesma e do contato que estabelece com o próprio público". Não interessa o que diga ou sobre o que ela fale (também porque o público, graças ao controle remoto, decide quando deixá-Ia falar e quando mudar de canal). Ela, para sobreviver a esse poder de comutação, procura entreter o espectador, dizendo-lhe "eu estou aqui, eu sou eu e eu sou você"s. Autores como Francesco Cassetti e Roger Odin detectam aí um empobrecimento: "Assistir à paleotelevisão implicava atividades cognitivas ou afetivas com plena dimensão humana: compreender, aprender, vibrar ao ritmo dos acontecimentos relatados, rir, chorar, ter medo, amar ou simplesmente se distrair. Assistir à neotelevisão não implica mais nada disso. A sintonização energética é uma sintonização no vazio, sem objeto'", Verón refere-se a esta argumentação, mas para criticá-Ia, sugerindo que o "vazio" pertenceria mais "aos nossos instrumentos conceituais" do que à própria televisão: o que se poria efetivamente em jogo é uma nova fase da tevê enquanto dispositivo semiótico de contato. É preciso, entretanto, a nosso modo de ver, deixar bem claro que "contato" não se reduz à idéia de mera conexão, devendo ser entendido como uma configuração perceptiva e afetiva que recobre uma nova forma de conhecimento, em que as capacidades de codificar e descodificar predominam sobre os puros e simples conteúdos. Partilhava esta linha de pensamento o pedagogo Paulo Freire que, mesmo não sendo especificamente um analista de mídia, assinalava a centralidade dos processos comunicativos na produção do saber. Comunicação era, para ele, a "co-participação dos sujeitos no ato de pensar", implicando um diálogo ou uma reciprocidade que não pode ser rompida. Contato e afeto eram, a seu modo de ver, categorias centrais para a compreensão do agir comunicativo, ensejando a dis-

8. Eco, Umberto. Tevê: a transparência teira, 1984, p. 182'- 183_

perdido. In: Viagem no irrealidade cotitikmo. Nova Fron-

9. Cf. Verón, Eliseo. História do televisão e componhas presidenciáveis. In: Verón, Eliseo & Neto, Antonio Fousfo. Lula presidente- Televisão e-política na campanha eleiioro). Hocker, 2003, p. 2'1

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tinção entre meios expressivos, complexo midiático.

como o jornal e a televisão, no interior do

Apontando para a diferença entre Freire e McLuhan (para quem a tevê era um meio "frio", exatamente por solicitar o envolvimento do público), Sérgio Guimarães, colaborador do pedagogo, reitera esta distinção: "Freire mesmo coloca a diferença entre um meio que seria mais quente, o da televisão, que teria uma abordagem mais emotiva, que mexe mais com o vivo da pessoa, com as emoções, e um meio mais frio, como o jornal, onde o que aparece não é o instrumento ao ViVO"lO. Seja qual for o juízo de valor que se faça sobre estes aspectos, configura-se entre os analistas uma espécie de consenso quanto ao crescente auto-referencialismo da mídia eletrônica, que tenderia a debilitar, por excesso de tautologia, a potência intrínseca da linguagem. Para os muitos críticos deste fenômeno, descartado o horizonte da autenticidade, o que importaria mesmo é falar do que se configura como primordial na vivência factícia da comunicação (facticidade no sentido de contingência e não na acepção heideggeriana de "queda" do homem* em face do Ser), ou seja, falar do enfraquecimento da linguagem pelo predomínio da contingência, da carência de "necessidade" ou da presença forte de uma ordem simbólica. Pauta-se por esta linha de raciocínio a maioria das restrições que críticos da cultura contemporânea dirigem ao fenômeno comunicacional. Outra, porém, é a inspiração explícita de Vattimo, sempre movido pela idéia de um primado da experiência estética sobre qualquer outra, mas ao mesmo tempo convicto de que essa experiência não se define por um horizonte cognitivo, tal como se haviam esforçado por demonstrar o neo-hegelianismo e a fenomenologia, por exemplo. Ele diz partir da interpretação dada por Gadamer aos famosos parágrafos 39 e 40 da Crítica do juizo, de Kant, para comparar o agir comunicativo ao juízo estético, entendido como umjuízo reflexivo, isto é, referente ao estado do sujeito e não à objetividade realística e universal da coisa. Nos citados parágrafos, Kant primeiro sustenta que uma sensação só se toma comunicável quando há acordo (Einstimmgkeit, eufonia) de afetos, o que pressupõe uma comunidade afetiva ou comunidade do gosto. Gosto, para ele, é a faculdade de julgar a priori a comunicabilidade (Mittelbarkeit) dos

10,. Cf. Meditsd'b, Eduardo & Faraco, Mariana Bittencourt. O Pensamento de Paulo Freire sobre jornalismo. e mídia. In: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vaI. XXVI,n. 1,. jan.jwn./2003.,

p. 3..0.

* Homem, nesta obro

se refere oo ser humano,

2I

nõo,

significando gênero.

sentimentos, "a faculdade que toma o sentimento universalmente comunicável sem a mediação de conceitos". Cabe, portanto, ao senso comum (sensus communis) assegurar o caráter universal, logo transcendental, do gosto. O que Vattimo está afirmando é que, assim como o gozo estético pode ser compreendido como uma expectativa de compartilhamento (o senso comum kantiano) do que se experimenta na contemplação de uma obra de arte, por exemplo, o apelo da comunicação estaria na possibilidade de integrar o sujeito contemporâneo numa sociedade de iguais, co-partícipes de umjuízo de gosto. Este é o "senso comum" reinterpretado por Gadamer de modo diverso da intenção kantiana de dar autonomia à estética, uma vez que sob o ponto de vista gadameriano a experiência estética não pode ser posta à parte da realidade vivida. Desta maneira, um sentimento intenso de comunidade, e não uma razão universalista, estaria no âmago do processo comunicacional. A comunicação enquanto "intensificação de si mesma como fim" seria, assim, afim à idéia kantiana de beleza como "finalidade sem a representação de um fim". Esta linha de pensamento guarda alguma semelhança com o modo pelo qual Jauss aborda o problema da recepção na experiência estética, destacando tanto a aisthesis - enquanto atitude perceptiva que dá primazia à sensorialidade ou afetividade sobre o conceito - quanto a catharsis, que "libera o observador dos interesses práticos e das opressões da realidade cotidiana, transportando-o para a liberdade estética do juízo, mediante a auto-satisfação no prazer alheio"]] . Nessa relação entre auto-satisfação e satisfação alheia, Jauss enxerga o núcleo propriamente comunicativo da recepção, onde a experiência sensível pode ganhar os foros emancipatórios de que fala Vattimo. Diferentemente de Jauss, entretanto, Vattimo não está preocupado em distinguir dimensão receptiva de dimensão produtiva da experiência estética, já que lhe parece avultar em primeiro plano a contraposição da comunidade do gosto (o sensus communis kantiano) ao universalismo conceitual da razão, para contornar a recuperação das formas sensíveis pelos paradigmas do poder e alargar, por meio da comunicação, o horizonte da experiência. O que mesmo o preocupa, de modo análogo ao cuidado de Kant com o prazer estético na contemplação da obra de arte, é a comunicabilidade pura e simples, para além de qualquer conteúdo específico.

11. Jauss, Hans Robert. Experiencia estética y hermenéutica estética. Taurus, 1992, p. 76.

experiencia

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literaria - Ensayos en el campo de Ia

É na realidade uma preocupação com o que está aquém ou além do conceito, isto é, com a experiência de uma dimensão primordial, que tem mais a ver com o sensível do que com a razão. Por exemplo, a dimensão da corporeidade, uma vez que sentir implica o corpo, mais ainda, uma necessária conexão entre espírito e corpo. Por isto, um outro modo de expor esta mesma preocupação aparece quando se contrapõe a imediatez da expressão corporal, característica da cultura audiovisual, às mediações conceituais dos sistemas representativos. Ou então, quando se reflete sobre a diferença entre o funcionamento da multidão ("massa") e a apregoada racionalidade do sujeito iluminista. Espinosa foi certamente o primeiro pensador, senão o primeiro "antropólogo", a debruçar-se sobre a função das imaginationes (sensações, imagens, devaneios, etc.) na orientação prática do vulgus (multidão, massa), em contraste com o esclarecimento racional da consciência. A formulação simplificada da questão manifesta-se na oposição entre corporeidade e intelectualismo. Por isso, retoma-se no pensamento contemporâneo a pergunta espinosiana (de inspiração renascentista e barroca) na Ética - "Que pode o corpo?" Da resposta de Espinosa se infere que ninguém tem condições de sabê-Ia, uma vez que não se conhecem os limites das afecções, do poder humano de ser afetado'". No pensamento espinosiano, o corpo humano é uma multiplicidade ou uma complexidade, composta de corpos diversos, cada um dos quais, por sua vez, implica outras composições'". Tal complexidade torna-o capaz de afetar e ser afetado por corpos externos, com os quais interage no meio circundante. Alma e corpo são a mesma coisa, apenas manifestada de formas diferentes, tendo a corporeidade relevância e precedência, uma vez que a alma é a sua idéia ou a sua representação. É a capacidade de associação entre idéia e corpo que suscita a imaginação. Esta se eleva no plano do conhecimento e faz da corporeidade uma potência afmnativa do ser. Na mesma esteira de pensamento, a psicanálise atesta que não existe uma identidade inerente entre corpo e psiquismo, esclarecendo que, do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, "o self e o corpo não são inerentemente superpostos, embora para haver saúde seja necessário que esta superposição se tome um fato, para que o indivíduo venha a poder iden-

12. Cf. Deleuze, Gilles. Spinoza et le orobtême de I'expression fia prótico (Escuto, 2002).

(Minuit,

1968) e Espinosa: filoso-

13. Vide o respeito do assunto o segundo e o terceiro porte do Ética (Spinoza. Éthique - Démontrée suivont I'ordre géométrique et divisée en cinq porfies. Tome Premier. Gornier).

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tificar-se com aquilo que, estritamente falando, não é o self,,14. Só aos poucos o psiquismo chega a um acordo com o corpo - em termos espinosianos, apenas na medida em que o conhecimento diferenciado da alma acompanhe o do corpo. A infinita e imediata expressividade do corpo leva à suposição de que o poder ativo e passivo das afecções ou dos afetos, além de preceder a discursividade da representação, é capaz de negar a sua centralidade racionalista, seu alegado poder único. Um exemplo talvez pequeno, mas certamente significativo, mostra-se no teatro, quando a qualidade de expressão no corpo do ator transcende a qualidade do texto, fazendo às vezes com que um roteiro medíocre ganhe dimensões notáveis no palco. Fatores como ritmo, tempo, entrosamento, energia, gesto e corpo sobrepõem-se à literalidade da peça. Por outro lado, uma parte ponderável do pensamento contemporâneo é atravessada pela intuição de que a dimensão dos afetos pode escapar da apregoada onipotência da razão metafisica. O regime afetivo da alegria é um bom exemplo. Segundo o francês Rosset, ela "é por sua própria definição, de essência ilógica e irracional. Para pretender ao sério e à coerência, sempre lhe faltará uma razão de ser que seja convincente ou mesmo simplesmente que possa ser confessada e dizível. A língua corrente diz muito mais a respeito do que geralmente se pensa quando fala de 'alegria louca' ou declara que alguém está 'louco de alegria'?".

É também o caso do liberal-pragmatista Rorty, quando opõe - como, aliás, já o fizera no passado Kierkegaard, ao apontar a ironia como limite entre sujeito e mundo, entre o estético e o ético - a figura do ultra-racional pensador metafisico à do ironista, que privilegia a dimensão afetiva: "Enquanto o metafisico considera que a característica moralmente relevante dos outros seres humanos é a sua relação com um poder comum mais vasto - a racionalidade, Deus, a verdade ou a história, por exemplo - o ironista considera que a definição moralmente relevante de uma pessoa, de um sujeito moral é 'algo que pode ser humilhado'. O seu sentido de solidariedade humana baseia-se no sentido de um perigo comum e não numa posse comum ou num poder partilhado?". Em suma, sentimento em vez de razão. Assim como Rosset descarta qualquer hipótese de uma grande causa por detrás da alegria - seja um "eu" sensível e poderoso, seja uma objetiva

14. Winnicott, D.W. Natureza humana. Imago, 1990, p. 144. 15. Rosset, Clément. Alegria: a força maior. Relume-Dumará, 2000, p. 25. 16. Rorty, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Presença, 1992, p. 124.

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presença permanente - e aponta para uma espécie de "força maior", que seria a aprovação incondicional da vida, Rorty não aceita a razão, nem qualquer outra ordem necessária, como fundamento do humano. Ele troca as inferências explicativas, feitas a partir de uma essencialidade racionalista, pelo sentimento, entendido como suscetibilidade comum a um grupo social. E o sentimento, desde a explicação de Hobbes sobre a origem da comunidade e da política, derivaria de uma emoção primeira, dominadora, que pode ser chamada de "medo".

Razão e afeto Estamos aqui, nos dois exemplos citados, longe da necessidade e do lagos, em plena zona obscura, contingente ou factícia dos afetos, isto é, da energia psíquica que se deixa ver nas diferentes modulações da tensão no corpo. Como bem sabemos, o lagos, razão de ser do cosmo e do ethos (a vida humana em sua naturalidade e em sua cotidianidade dos hábitos, costumes e afetos), mas também linguagem como ordenamento que acolhe todas diferenças, é desde a Antiguidade grega o caminho dominante para o conhecimento e a verdade. É a via que, dotada de metron ou justa medida, induz ao pensamento e à capacidade de fazer inferências lógicas, ensejando assim o controle das possíveis desmedidas da emoção ou paixão. Trata-se, portanto, da razão, concebida como lucidez e sabedoria ética implicadas na conduta prudente ou sabedoria prática da phronesis, mas também como valor de medida e de normativização. Na realidade, a genealogia da razão aponta para uma duplicidade, cujos nomes são, de um lado, naus ou intellectus e, de outro, dianoia ou ratio. Intellectus comporta a intuição dos dados imediatos da experiência, ou seja, dá ensejo a juízos sensíveis e sintéticos; ratio diz respeito ao pensamento conceitual e discursivo, mais analítico do que sintético. Traduzindo-se toda a amplitude do lagos como ratio, privilegiam-se a medida e a norma e se abre caminho para um dogmatismo que, a pretexto de adesão à gravidade do pensamento, desconhece, irrefletidamente, a potência emancipatória contida na ilusão, na emoção do riso e no sentimento da ironia. Esse dogmatismo decorre da idéia do lagos como redução da diversidade do real (a infinitude dos opostos, o mistério da diferença) ao império da unidade. Não se trata, portanto, do mesmo "um" heracliteano, que mantém a porta aberta ao diverso. No interior do campo filosófico, a razão é tradicionalmente considerada em seus aspectos subjetivo e objetivo. No primeiro caso e em especial 25

para os pensadores ancorados no platonismo, trata-se de uma faculdade inteligível ora como uma operação articulada da inteligência (filosofia escolástica), ora como uma faculdade de absoluto, voltada para a explicação última dos fenômenos nas três idéias transcendentais do eu, do mundo e de Deus (Kant). No aspecto objetivo, a razão é tanto o conjunto das noções primeiras (ser, substância, identidade, causa e fim) e dos princípios implicados nos raciocínios (contradição, razão suficiente e substância) quanto das leis e das causas que tomam inteligíveis os fatos e os seres. Nisso tudo ressoa fortemente a doutrina platônica. Em sua famosa alegoria da caverna, narrada como mito no diálogo entre Sócrates e Gláucon (A república), Platão mostra que, para os homens aprisionados e distantes da luz do sol, a verdade da caverna são as sombras ou as silhuetas das coisas que se projetam na parede, à luz do fogo. Sombras não são propriamente coisas, e sim os seus indícios. Sem as referências básicas, os homens deixam de perceber as sombras enquanto tais e vivem de sensações, isto é, da mera aparência, que é ao mesmo tempo a sua realidade e a impossibilidade de fazer a distinção entre as coisas e suas projeções. Nesta pura sensibilidade em que consiste o ser das sombras, sem se dar conta de sua radical escravidão, o homem não pensa livremente, não se realiza como pleno sujeito da razão e da linguagem. Para a realização dessa plenitude, não se pode obliterar a dimensão objetiva do racionalismo - a inteligibilidade, tanto em seu sentido nominativo quanto genitivo, dos princípios, das leis e das causas - que faz da razão não um atributo essencial colado a uma etnia ou a uma civilização particulares, mas uma "tecnologia" de conhecimento inerente a experiências históricas diferenciadas. Greco-romano que seja o ideal da razão, esta não se reduz, em sua efetividade operacional, à geografia civilizatória do Ocidente. Dentro de certas práticas culturais perpetuadas pelas academias, a razão pode, entretanto, privilegiar as derivas metafisicas de seu aspecto subjetivo e, então, exercer-se como objeto de um culto que a considera uma faculdade, inerente à "natureza" humana e capaz de romper o véu das aparências no rumo de uma realidade "verdadeira". Aliás, não apenas nas academias de feição ocidental: na tradição religiosa do hinduísmo, a palavraguru compõe-se de dois étimos que significam "romper as trevas", isto é, penetrar nas aparências que obscurecem a verdade. Só que no Ocidente, desde o reequilíbrio racional entre ordem divina e ordem humana perseguido pelo teatro grego - passando pelas doutrinas de Platão e de Aristóte1es, que pregavam o conhecimento como acesso a uma realidade superior -, a verdade transcendente, como medida de todas as coi26

sas, tomou-se a garantia do primado da racionalidade cognitiva do lagos unificador. Esta racionalidade deveria referir-se, em princípio, à regra e ao domínio técnico da razão, mas na prática social implica a ditadura lógica da razão enquanto domínio universal. Na doutrina cristã (neoplatônica), Deus se faz Verdade; no conhecimento, a ciência se faz deus. Assim, desde os pré-socráticos e estóicos - estes últimos indiferentes à sensibilidade e aos instintos, submetidos à medida da "Lei" -, o Ocidente habituou-se a fazer a distinção entre o racionalismo cognitivo e as tensões ou perturbações da alma conhecidas como emoções ou sentimentos, que Aristóteles designava como to pathos. Esta palavra dá conta da impressão moral ou fisica causada por idéias, pessoas e coisas. Em grego, ela tem um amplo alcance semântico, mas os latinos a traduziram como passio (de patior, sofrer) para sublinhar o que o homem "sofre": a passividade vitimizada de sua experiência. Aristóteles, que fez da paixão uma de suas dez categorias, observa na Retórica que "as paixões são todos aqueles sentimentos que alteram os homens, a ponto de afetar seus juízos e vêm acompanhados de dor e prazer, como a ira, a compaixão, o medo e seus opostos" (Livro Il, 1377 b). A dicotomia radical entre paixão e juízo, mas igualmente a ambivalência da razão, exprime-se poeticamente na tragédia As bacantes, de Eurípides, em que a racionalidade tirânica e colérica do Rei Penteu se contrapõe ao universo insensato e apaixonado do culto ao deus Dioniso. Na peça, como se sabe, o guardião da racionalidade (Penteu, auxiliado pelo vidente Tirésias) termina sendo despedaçado pelas tebanas enfurecidas, dentre as quais a sua própria mãe, Agavé. No embate das diferentes forças, fica patente que há uma parte de paixão, logo de loucura ou de delírio, em toda razão. Na Idade Média, os escolásticos entendiam paixão como qualquer movimento do apetite sensível. Alberto Magno (professor de Santo Tomás de Aquino) designaria essa experiência como affectio, geralmente traduzida por afecção ou afeto. Para Santo Agostinho, termos como affectio, affectus.passiones são simplesmente sinônimos. Vale assinalar que, nessa ordem dos fenômenos humanos, onde tem primado o sensível ou a sensibilidade (entendida como propriedade de acolher impressões e excitações, a elas reagindo com operações distintas dos processos intelectuais), os conceitos revelam-se particularmente imprecisos, a despeito do empenho tradicional da disciplina filosófica e, depois, da psicologia, da psicossociologia e da psicanálise. Os termos podem tocar-se e confundir-se, enquanto os teóricos propõem demarcações para uma sinonímia genericamente relativa aos estados contrastados de dor ou de prazer, que constituem os protótipos ou matrizes psíquicas dos afetos. 27

Afeto é nome recente para o que antes se designava como afecção, a exemplo da doutrina de Espinosa: "Entendo por paixões (affectus) as afecções (affectiones) do corpo que aumentam e diminuem a potência do agir" (Ética Ill, def. 3). Registra-se, aqui, entretanto, uma sutil diferença entre afecção, como um conceito referido diretamente ao corpo e sua idéia, e afeto (affectus), "que implica tanto para o corpo quanto para o espírito um aumento ou uma diminuição da potência de agir":". Deste modo, sendo a aifectio um estado do corpo afetado por outro presente, e o affectus, uma passagem de um estado a outro, são diferentes as afecções-imagens ou idéias dos afetos-sentimentos. O afeto supõe uma imagem ou uma idéia, mas a ela não se reduz, por ser puramente transitivo e não representativo. No pensamento espinosiano, o entendimento do que seja a afecção passa pelo de "modo". Existe, para ele, em tudo que é, o ser em si ou substância e o ser em outra coisa. O modo, ser em outra coisa, segundo termo da alternativa daquilo que é, define-se como o conjunto das afecções de uma substância ou "em outras palavras, aquilo que está em outra coisa pela qual também é concebido" (Ética, r, def. 5). Como explica Deleuze, "um dos pontos essenciais do espinosismo reside na identificação da relação ontológica substância-modos com a relação epistemológica essência-propriedades e a relação física causa-efeito?". Embora diferentes da substância em essência e em existência, os modos são produzidos "nesses mesmos atributos que constituem a essência da substância". Pois bem, as afecções equivalem aos modos, que se acham presentes tanto no corpo como no espírito. Corpo é um modo da extensão, é coisa; espírito é um modo do pensamento, portanto idéia do corpo que lhe corresponde.

Emoção, paixão e sentimento Hoje, termos como afeição ou afecção, provenientes de affectus e aifectio, entendem-se como um conjunto de estados e tendências dentro da função psíquica denominada afetividade, mais especificamente, uma mudança de estado e tendência para um objetivo, provocadas por causa externa. Afeto, por sua vez, com a mesma etimologia, refere-se ao exercício de uma ação no sentido B, em particular sobre a sensibilidade de B, que é um ser necessariamente vivo. A ação de afetar (no latim clássico, podia corres-

17. Deleuze, Gilles. Espinosa: filosofia prático. Escuto, 2002, p. 92. 18./bid.

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ponder a commuovere) contém o significado de emoção, ou seja, um fenômeno afetivo que, não sendo tendência para um objetivo, nem uma ação de dentro para fora (a sensação, vale lembrar, é de fora para dentro) define-se por um estado de choque ou de perturbação na conscíêncía". Ou seja, em linhas gerais, afeto pode muito bem equivaler à idéia de energia psíquica, assinalada por uma tensão em campos de consciência contraditórios. Mostra-se, assim, no desejo, na vontade, na disposição psíquica do indivíduo que, em busca de prazer, é provocado pela descarga da tensão". Fixemo-nos no estado designado pela palavra "emoção" por sua alta freqüência no vocabulário moderno da afetividade e por um certo consenso teórico no sentido de que ela dá unidade aos fenômenos sensíveis, fazendo com que o estado afetivo dominante permeie todos os estados de consciência. Emoção deriva do latim emovere, emotus - donde, commuovere. Infinitivo e passado verbais referem-se a um "movimento" energético ou espiritual desde um ponto zero ou um ponto originário na direção de um outro, como conseqüência de uma certa tensão, capaz de afetar organicamente o corpo humano. "Emotus" significa abalado, sacudido, posto em movimento. Esse movimento pode ser também descrito como uma "moção", a exemplo de Hobbes que, para explicar a origem da paixão, recorre à idéia de um percurso, cuja primeira etapa, a da apreensão sensível do objeto, consiste na moção cerebral provocada pela "concepção" ou aparência do objeto. Na segunda etapa, a moção é suscetível de transformar-se no coração em dor ou prazer". Aí então, denomina-se propriamente paixão, no sentido hoje corrente de emoção. A emoção é um tipo de afeto que se costuma atribuir exclusivamente aos seres humanos, embora comporte a possibilidade de ser também pensada como traço do animal. A tradição metafisica registra vários sistemas explicativos da natureza do animal, desde os que lhe atribuem uma "alma razoável" (Plutarco, Montaigne, Spencer) ou uma "alma sensitiva" (Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Leibniz) até os que o concebem como uma máquina ou "autômato" aperfeiçoado (Descartes)". Há, assim, reconheci-

19. Cf. lalande, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. Martins Fontes, 1999. 20. Deleuze e Guattari fazem uma distinção entre percepções/afecções (dimensão subjetiva da sensibilidade) e perceptos/afetos, entendidos como uma dimensão impessoal, capaz de ultrapassar tanto sujeito como objeto, a exemplo de formas auto-suficientes (cf. Qu'est·ce Que Ia philosophie?,1991). 21. Cf. The english works of Thomas Hobbes of Malmesbury. John Bohn, 1839. 22. Cf. Sortais, G. Traité de philosophie. Vol. I. P. lethielleux, 1921, p. 491-495.

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mento das manifestações de sensibilidade e de inteligência por parte do animal, com a reserva de que ele é incapaz de operações propriamente intelectuais, por não poder abstrair, generalizar e julgar. Os ditos "sentimentos simples" nele existentes, como o júbilo, a tristeza, o temor, o amor, o ódio, estão no nível das sensações, portanto das operações consideradas "inferiores". As analogias possíveis entre as manifestações sensíveis do homem e as do animal apenas intensificam as dificuldades de se inscrever a dimensão afetiva na razão e no pensamento, domínios da inteligência e do sentido, porque ela não se organiza como uma estrutura: é mais conteúdo sensível do que forma organizada. Ela precede, assim, o sentido lingüístico, que é uma ordem de inteligibilidade e compreensão, portanto um modo existencial e dialógico em que ressoa sempre, necessariamente, mais de uma voz. Damásio, um especialista contemporâneo em processos neuroquímicos, resume essa diferença, afirmando que "as estratégias de raciocínio giram em tomo de objetivos, opções de ação, previsões de resultados futuros e planos para a implementação de objetivos em diversas escalas de tempo", enquanto que "os processos de emoção e de sentimentos fazem parte integrante da maquinaria neural para a regulação biológica, cujo ceme é constituído por controles homeostáticos, impulsos e instintos'f". A corporeidade pesa na diferença, tal como já havia assinalado Espinosa. Dele está próximo Damásio, ao ver "a essência da emoção como a coleção de mudanças no estado do corpo que são induzi das numa infinidade de órgãos por meio das terminações nas células nervosas sob o controle de um sistema cerebral dedicado, o qual responde ao conteúdo dos pensamentos relativos a uma determinada entidade ou acontecimento'f". Parece ser-lhe cara uma citação do pragmatista William James: "Cada objeto que excita um instinto excita também uma emoção". Damásio preocupa-se especialmente com a vinculação dos sistemas cerebrais a comportamentos de planejamento e decisão "pessoais e sociais" e conclui por uma partilha entre o que se chama de racional idade e o processamento de emoções. Partindo da noção de corpo como organismo vivo complexo, pleno de processos em constante modificação, ele sustenta que a capa23. Dámasio, Anfónio R. o erro de Descartes - Emoção, razão e o cérebro humano. Companhia das letras, 2001, p. 109. Para este autor, o erro cartesiono consiste precisamente no enunciado "penso, logo existo", que deveria ser corrigido para "existo, e sinto, logo penso". Na história do pensamento, esta não é uma proposição nova: no passado, foram vários os pensadores a falar do primado da "paixão" sobre o juizo, destacando-se no século XIXSchopenhauer, o primeiro a sistematizar filosoficamente a predominância da vontade sobre o intelecto. 24. (bid., p. 168.

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cidade de deliberar está relacionada à capacidade de ordenação de imagens internas (visuais, sonoras, olfativas, etc.). Estas constituem propriamente o pensamento. O conhecimento assume em grande parte a forma de imagens. Para que se realize o raciocínio, é preciso que essas imagens estejam ativas e disponíveis, o que supõe processos ligados a emoções e sentimentos. Agora, a vulgata cognitivista tem falado de "inteligência emocional". Pode-se com isso afirmar a existência de uma inteligência baseada não apenas na racionalidade cognitiva, mas também naquilo que se dá a conhecer como afetos e que constituiria um elo essencial entre o corpo e a consciência. Trata-se, assim, tanto da emoção enquanto percepção direta dos estados corporais quanto do emocionalismo, ou campo próprio do amor, da raiva, da alegria, da tristeza, das diversas paixões. Evidentemente, a inteligência não depende da consciência clara de um "eu" puramente racional, já que são muitas as formas de compreensão que caminham na obscuridade. Mas a inteligência emocional dos best-sellers correntes é geralmente entendida como eficácia do estado afetivo, portanto, como pretexto para o controle gerencial das emoções apaixonadas em função de uma racionalidade instrumental, que se pode pôr a serviço da criatividade na produção, mas principalmente em função do consumo. Seu apelo dirige-se ao "corpo do consumo", isto é, a representações corporais afinadas com as formas mutáveis necessárias à rápida evolução das mercadorias, à porosidade das identificações profissionais, às técnicas farmacológicas de saúde fisica e mental e à cultura midiática das sensações, emoções e paixões. Emoção não é exatamente o mesmo que paixão, embora dela se aproxime o sentido primal de paixão (ambos os afetos cabem no grego pathos ou paskhein), designando tudo o que acontece de novo a um sujeito. Assim, falar da vida como uma paixão é falar, filosoficamente, da vida como uma dinâmica em que se morre continuamente para deixar surgir o inesperado, ou o novo da existência. A paixão implica um estado emocional continuado ou durável, portanto mais persistente do que o instantâneo abalo anímico da emoção. Ela predomina sobre outros recursos sensíveis, como no exemplo clássico da paixão por dinheiro por parte do personagem Harpagão (em O avarento), de Moliére. Mas na Europa do século XVII chamava-se a emoção de paixão (na verdade, este termo recobria o conjunto dos fenômenos da afetividade), à qual estaria o homem passivamente submetido, segundo Espinosa, um "neo-estóico", por exemplo: "Frente à paixão, a razão é impotente, mas o entendimento permite libertarmo-nos dela". Este é o tipo de julgamento que, na Antiguidade grega, pertenceu ao estoicismo (que tinha como ideal de moralidade a ataraxia ou imperturbabili31

dade da alma), mas que refloresceu no século XVII, quando amadurece um processo de quase quatro séculos de formação de uma mentalidade quantificadora, logo uma racionalidade instrumental, por exigência das transformações no modo de produção econômica e das novas estratégias de domínio, em que assume lugar primordial o poder de cálculo da ciência. A consciência universalista da modernidade européia - sempre regi da pela dimensão da medida implícita no logos unificador grego - preside à elaboração de uma vida social mecânica e previsível. Por isto, Crosby pode referir-se a uma vocação "pantométrica?" do Ocidente, isto é, a uma inclinação histórica para a medição universal das coisas, dentre as quais o próprio planeta. As evidências aparecem no comércio, com o controle minucioso de receita e despesa pela contabilidade, em substituição à memória do comerciante; na música, com a representação gráfica dos sons, que altera os caminhos da composição e do canto; na pintura, com a precisão geométrica da perspectiva; no tempo, com a cronometria rígida dos relógios; no espaço, com o ordenamento técnico dos mapas e dos instrumentos de navegação. Mas igualmente no corpo humano que, a partir do século XVII, se dissocia do conceito de pessoa, convertendo-se num objeto entre outros. Como a carne se revela um embaraço para a racionalidade, banaliza-se o recurso à metáfora mecânica para designar e tecnologizar a corporeidade. No transe de sua quantificação científica e tecnológica, o mundo moderno começa a suspeitar mais fortemente dos afetos ou paixões, enquanto instâncias de confusão ou de uma desmedida socialmente indesejável. A civilização ocidental avança no sentido do controle (ora a medida técnica, ora a repressão) das pulsões, sejam sexuais ou agressivas. Até na guerra a sociedade civilizada impõe a seus membros um domínio rigoroso da afetividade, para que a capacidade de destruição se adapte à mecanização. A excitação guerreira passa a ser despertada por catástrofes, doutrinas e propaganda, como observa Elias: "É preciso perturbações sociais e uma grande miséria, é preciso, sobretudo, uma propaganda poderosamente orquestrada para despertar no indivíduo e legitimar de qualquer forma os instintos recalcados, as manifestações pulsionais proscritas na sociedade civilizada, tais como o prazer de matar e de destruir=". Na paz, a descarga das pulsões converge para a prática do esporte ou para o desfrute do espetáculo.

25. Cf. Crosby, A.W. The measure of rea/ity - Quantification and Western Society, J 250-1600. Cambridge University Press, 1997. 26. Elias, Norbert. La civilisation des moeurs. Calman-Lévy, 1973, p. 294.

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Diante de pressões civilizatórias desta ordem, materialmente mais visíveis nas transformações da força de trabalho e das relações de produção, intensificam-se a visão racional-materialista do mundo e o deslocamento do pensamento do ser como substância para o ser como sujeito, lastreados pela doutrina cartesiana (O discurso do método é de 1637), a partir dos notáveis progressos da Astronomia e da Física. Com Descartes, o primeiro grande filósofo da modemidade, a racionalidade confirma-se oficialmente como ratio, isto é, medida e norma. "Método" é precisamente esta modalidade de razão, que agora leva o domínio do ser a passar pelo controle do sujeito. Em As paixões da alma, Descartes preconiza o controle das "inclinações animais", inclusive o medo, por meio do pensamento, da razão e da vontade. Na reflexão cartesiana, o espírito pensa e sente (por estar ligado ao corpo) na medida em que é um "eu" racionalmente consciente de si mesmo. Sentir é, no limite, pensar. Entronizada, a razão deve sempre transparecer na representação e no sujeito. Este último termo deve ser entendido como um "suporte" ou um "sustentáculo", isto é, uma identidade capaz de sustentar ou servir de fundamento para a mudança: ainda que mudem as qualidades acidentais, o sujeito permanece idêntico a si mesmo. Com Descartes, o "eu", de "eu penso", garante a subjetividade do sujeito, logo, a subjetividade da consciência, afirmando a identidade pessoal. Constituídas em objeto, as representações dispõem-se racionalmente à consciência pensante (e "sensitiva"), sempre idêntica a si mesma. No século XVIII, ainda fortemente cartesiano, entendem-se filosoficamente as paixões (logo, a "desmedida") como o conjunto dos fenômenos passivos da alma. O universo-máquina de Descartes se ajustaria perfeitamente, para seus discípulos ou sucessores, à metáfora fisicalista e industrialista do mundo dos homens como um sistema maquínico a vapor, onde a alma podia existir, mas apenas como o princípio (racional) de um momento termodinâmico, uma quantidade de movimento, desencadeado no corpo, pelo curso dos espíritos animais. Desde então, passam a ter realidade aceitável apenas os fenômenos que se reduzam à observação objetiva por parte de um sujeito e à racionalidade das leis de causa e efeito. No pensamento kantiano, cujo programa básico é o estudo da razão, o ideal moral é atingir a insensibilidade (apatheia), embora sem o radicalismo da ataraxia estóica, uma vez que admite a manutenção dos sentimentos espirituais, como o sentimento do belo, a amizade, o amor da verdade, etc. A essa reflexão, separada da esfera dos afetos, sempre se dirigiu, longe dos círculos filosóficos da Europa, a crítica proveniente de uma tradição de 33

pensamento hindu, não sistematizada, mas com presença em vários grandes mestres da yoga, segundo a qual o mundo do maya (a ilusão enganadora) é a atividade mental desligada da realidade e em que as nossas projeções e interpretações predominam sobre os afetos. O hindu não critica a atividade do intelecto em seus aspectos de atenção lúcida, exame, descriminação e deliberação, e sim o intelectualismo especulativo que transforma o homem em cabeça sem coração nem COrp027.Algo desse espírito reflui para o pensamento romântico, e a partir daí tende a desaparecer a nuance pejorativa atribuída à passividade das paixões, que passam a ser louvadas como afetos indispensáveis à grandiosidade das ações. É certo que, antes disso, a estética kantiana havia preparado o caminho para se acolher o afeto na casa do pensamento: "Há, toda vez que nós transmitimos nossos pensamentos, dois modos (modi) de compô-los, um dos quais se chama maneira (modus aestheticus) e o outro, método (modus logicus), que se distinguem entre si no fato de que o primeiro modo não possui nenhum outro padrão que não o sentimento de que há unidade na apresentação (dos pensamentos), ao passo que o segundo segue em tudo princípios indeterminados" (Crítica do juízo, parágrafo 49). Mas aí ainda é visível a hegemonia do sujeito e da razão. O problema da diferença entre o inteligível e o sensível, entre a medida e a desmedida, é de fato uma outra maneira de se colocar o antiqüíssimo problema da diferença entre o uno e o múltiplo, assim como o problema, moderno, da distinção entre ciência e experiência. Esta última sempre foi perturbadora do primado racionalista - basta lembrar Descartes que enxergava um malin génie, uma espécie de espírito travesso, atuando sempre na espontaneidade da experiência contra as leis da necessidade e da causalidade.

Iconoclastias do pensamento No campo filosófico, Schopenhauer foi o primeiro a sistematizar aquilo que na época pôde ser elogiosamente classificado como uma "iconoclastia" contra o primado da causalidade lógica e da necessidade absoluta em ter-

27. Nõo há nenhuma homogeneidade de pensamento dentro da tradição hindu capaz de levar a uma posição única dessa ordem. Referimo-nos aqui principalmente a uma determinada linha de interpretação do texto da Advaita Vedanta do Yogavasistha, composto provavelmente entre as séculos XI e XIII, que sintetiza o Samkhya, a Voga, o Budismo e os Upanishads e se caracteriza por uma abordagem pragmatista, de acento modernizante e muito próximo de figuras exponenciais da filosofia ocidental, a exemplo de Hobbes, Schopenhauer e Niefzsche. Isto é particularmente visível no ensinamento escrito e oral de pensadores ou gurus como Krishnamurti e Svãmi Prajnãnpad.

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mos da existência humana. Desde antes da primeira versão de O mundo como vontade e representação (1819)28, ele já manifesta o seu espanto fi1oófico diante da idéia da necessidade causal, mostrando que, apenas no domínio das representações empíricas, a causalidade coincide de fato com o princípio da razão. Este último não predominaria entretanto nas noções abstratas, nas percepções a priori e no "ser enquanto querer" ou Vontade. Negando a necessidade absoluta - e assim as construções intelectualistas que identificam realidade e racionalidade sob a égide do Espírito absoluto (Hegel) ou vêem o mundo como "substância absoluta" (Espinosa) -, Schopenhauer concebe a existência humana como mergulhada na pura contingência, sem que qualquer interpretação racionalista, inclusive as da triunfante ciência, seja capaz de preencher a brecha da explicação causal. Sua indignação pessimista diante do mal ou da dor procede da consciência da ausência de justificativas ou de causas absolutas, o que leva o homem à exeriência difícil da contingência, isto é, de algo que aparece de uma forma, mas que bem poderia aparecer de outra completamente diferente. Desiludido com a possibilidade de uma metafísica explicação última, chopenhauer concebe, entretanto, um substrato para os fenômenos, as causas físicas e as representações do mundo, que é aforça, um princípio dinâico misterioso ou inexplicado em face da consciência que, em sua forma global, é "Vontade" ou "Querer" (Wille, em alemão). O termo, proveniente e um vocabulário tradicional, pode prestar-se a confusões. Não se trata de era função premeditada da consciência, e sim de uma força subjacente à .versalidade dos fenômenos humanos (conscientes e inconscientes) e naais. A palavra voluntas, em latim, traduzia também a dynamis (força proulsora) grega. É à luz desta genealogia semântica que se deve entender adoção desse termo por Schopenhauer (e inclusive a sua retomada por _-ietzsche). A Vontade (com maiúscula, para distinguir o Querer global da ·ontade individualizada) significa o primado do afetivo sobre o intelectual, u seja, o condicionamento do espírito pelo domínio do que, no século XIX, - concebiam como "paixões". Uma manifestação concreta desse estado afetivo radicalmente oposto à representação, a mais pura expressão da Vontade, é a música, para Schopeauer. Esta ofereceria a tradução mais profunda da interioridade das coiporque, revelando-se como temporalidade pura do vir-a-ser, não se dei-

. Schopenhauer. Le monde como volonté et comme représentation. PUF, 1966. Existe uma uçóo brasileira desta obra.

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~-~~~~-~~~~~----------------------xa afetar pelo mundo do espaço. Copiando o mundo, mas sem realmente representá-lo, a música seria manifestação radical da Vontade. Em tomo das principais intuições de Schopenhauer se desenvolve o básico do pensamento nietzscheano, uma das mais instigantes elaborações filosóficas do século XIX até hoje. Em ambos, embora com inflexões diferentes, tem seu primado a Vontade (em Nietzsche, Wille sur Macht, vontade de potência). Mas beatitude (em alemão, Seligkeit) é o termo que constitui, na justa opinião de Rosset, o tema central de Nietzsche: "Provavelmente, do mesmo modo, outros termos conviriam: alegria de viver, gáudio, júbilo, prazer de existir, adesão à realidade, e ainda muitos outros. Pouco importa a palavra'", o que aqui conta é a idéia ou a intenção de uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real, a que se resume e se singulariza o pensamento filosófico de Nietzsche'r'". Amor fali, ou adesão incondicional à realidade tal e qual aparece, sem angústia quanto aos fundamentos, é o amor proclamado por Nietzsche que, assim, se toma sujeito consciente da experiência transbordante da felicidade, da afirmação beatífica do mundo. Essa experiência não exclui o ceticismo, nem o sofrimento. Em vários dos aforismos da Gaia ciência, Crepúsculo dos ídolos e O viajante e sua sombra, principalmente, Nietzsche empenha-se em mostrar como o pensamento da felicidade engloba o da infelicidade e do sofrimento. A afirmação alegre do mundo e a experiência da dor, para a qual deve o homem disciplinar-se, caminham juntas. E nenhuma razão fundamental, isto é, nenhuma essência nem qualquer realidade escondida no fundo das aparências, subjaz ao testemunho afirmativo da existência perpassada pela alternância necessária do prazer e da dor. A paixão de viver prima sobre qualquer explicação intelectual da vida ou sobre a razão enquanto força suprema que gera a consciência individual. Daí, a conhecida crítica nietzscheana ao "homem meridiano", aquele que só vê a claridade, a transparência racionalista da consciência. Uma vez mais, com Nietzsche, a filosofia ocidental- sob a pecha do irracionalismo, é verdade - coincide em pontos fortes com aspectos cruciais do pensamento hindu que, mesmo reconhecendo o ilusório nas aparências, afirma-as como a realidade do mundo fenomênico. Esta é real para o observador, já que lhe aparece como real. É essa realidade que o hindu busca integrar, para abolir a separação entre sujeito e objeto e atingir a plenitude ou um modo de consciência não-dual. Nada aqui, entretanto, de fusão mística

29. Vale lembrar que leibniz usava a palavra Glückseligkeit, cujo significado oscila entre alegria e felicidade, para designar um regime afetivo semelhante ao descrito por Nietzsche.

30. Rosset, Clément. Op. cit., p. 35.

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do sujeito com o objeto, e sim de aceitação da diversidade do real tal e qual aparece, com o fito de integrá-Ia e chegar depois a uma experiência da unidade, que é apenas um outro nome para a paixão da vida, o amor. Na dimensão dos afetos, como se vê, uma certa Índia e um certo Ocidente abraçam-se. Quanto à paixão em seu entendimento geral, chega à moderna psicologia ocidental como uma tendência durável, capaz de dominar intensamente o espírito, em geral de forma exagerada, subordinando e arrastando consigo outras inclinações espirituais. Isto é claramente corroborado no interior da tradição psicológica francesa, onde o sentimento é também conotado como durável, embora mais atenuado, enquanto a emoção é aguda e efêmera. Explicitamente debruçada sobre o pensamento de Schopenhauer, a psicanálise - uma teoria da experiência sensível com impacto transformador, porque questiona a consciência e a identidade do sujeito - particulariza o conceito de afeto, preocupando-se com a sua origem infantil e aventando a hipótese de afetos inconscientes, tal como a loucura aparece na análise schopenhaueriana. Na obra de Freud- especialmente em Inibição, sintoma e angústia - termos como AjJekt (afeto), Empfindung (sensação) e Gefiihl (sentimento) oscilam polissemicamente, tomando às vezes problemáticos o entendimento e a tradução. Por outro lado, dentro da teoria geral dos processos inconscientes, afeto ou "paixão" pode referir-se tanto à noção de quantidade de energia pulsional (uma soma variável e descarregável de energia, um quantum de tensão) quanto à de uma qualidade subjetiva presente nos estados conscientes de prazer ou desprazer. Distinta do que se entende como "razão, entretanto interage com ela, como sustenta Freud: "O Ego representa o que chamamos a razão e a reflexão, enquanto o Id, pelo contrário, é dominado pelas paixões" (cf. O ego e o id, 1923). Para o criador da psicanálise, o ego (ou o eu) é, "acima de tudo, corporal", levando em conta que toda a memória não concentrada nas estruturas cerebrais mantém-se a vida inteira no corpo (boca, olhos, etc.), basicamente em zonas tomadas erógenas pela relação da mãe com o filho. Esta é a memória afetiva ou pulsional. Pulsão, termo dificil e indeterminado, é uma espécie de mito conceitual criado por Freud para representar no psiquismo, por meio da idéia e do afeto, um estímulo ocorrido numa parte do corpo. Embora seja instintiva ou corporal a sua fonte, pulsão não se confunde com instinto ou com naturalidade biológica, sendo de fato um artificio teórico para apontar os limites entre o corpo biológico e o simbólico. Afeto é o que assinala o desvio ou a transformação do natural em simbólico. E por isto pode mesmo a pulsão ser 37

pensada como uma paixão - "paixões do id" (pulsões de vida e de morte) na terminologia da última fase freudiana. Frisando que a "a concepção psicanalítica do afeto se distingue de qualquer outra abordagem dos fenômenos que teorize sobre esse termo, neurobiológica, psicológica, sociológica ou filosófica", o francês Green propõe entendê-lo como "um termo categorial que agrupa todos os aspectos subjetivos qualificativos da vida emocional no sentido amplo, compreendendo todas as nuanças que a língua alemã (Empfindung, Gefiihly ou a língua francesa (émotion, seruiment.passion, etc.) encontram sob este tópico?". "Categorial" quer dizer aí que, para a psicanálise, o termo afeto será mais "metapsicológico" do que descritivo, isto é, mais atinente à crítica interna do conhecimento psicanalítico do que à vivida diversidade sensível dos indivíduos e dos grupos. É no interior do campo metapsicológico, portanto, que se pode criticar posições excessivamente representacionais ou unitaristas da forma lingüística, a exemplo do que faz Green com a teoria do seu famoso colega Jacques Lacan. Para Green, a distinção essencial feita por Freud entre os dois tipos de excitação pulsional correspondentes a representação de coisa e representação da palavra (e, conseqüentemente, a modos distintos de descarga dos processos psíquicos) desaparece na teoria lacaniana, que parece passar ao largo da pluralidade dos materiais de trabalho inconscientes e da heterogeneidade psíquica, centrando-se na linearidade da linguagem. Em outras palavras, Green censura em Lacan o esquecimento do afeto e, assim, recoloca no campo psicanalítico a tradicional distinção filosófica entre afeto e intelecto. A realidade é que Lacan ou até mesmo seus opositores contornam sempre o problema da determinação conceitual do afeto (preferem geralmente ater-se a seus efeitos), hesitantes diante de sua relação com velhas categorias metafísicas, como força vital e vontade. Mas sem passar da metapsicologia à descrição ativa da vida comum, a modernidade psicanalítica dos afetos ainda não oferece saída para o vezo das antigas cosmo visões mecanicistas e fisicalistas, onde reina despoticamente a razão instrumental, comandada por ficções históricas como os conceitos de sujeito autônomo, aparelhado por uma mente ou uma consciência. A neuropsicologia contemporânea, por sua vez, trabalha com a suposição de que a imagem - não enquanto forma fixa, mas como reinterpretação

31. Green, André.

o discurso vivo-

Uma teoria psicanalítico do afeto. Francisco Alves, 1982, p. 20.

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analógica de uma realidade acionada por sensações e emoções - é o principal conteúdo do pensamento, em forma consciente ou inconsciente. Nesta segunda direção, pesquisas neurocognitivas vêm apontando para evidências no sentido de que a produção de imagens nos sonhos baseia-se em efeitos de neurotransmissores em determinadas fases do sono, controladas por circuitos "instintivo-motivacionais" do cérebro. Nas vivências emocionais primordiais, o psíquico e o corporal revelam-se em estreita conexão. Essa conexão ocupou sempre o centro de várias sistematizações metafisicas não-ocidentais, para as quais o mundo da natureza não se constitui como totalmente exterior à individualidade designada como "eu". Em outras palavras, o impessoal ou a objetividade não se revelam como exteriores o bastante para conseguirem reduzir o ser do homem a um "eu" culturalmente identificado no campo da experiência a um processo de objetivação que separa radicalmente sujeito de objeto e exclui a dimensão do sensível. Na verdade, o impessoal, o natural, o sensível- figuras de um cosmos rejeitado pelo logos da modemidade ocidental- são íntimos da individualidade humana, exprimindo-se em tudo que a razão hegemônica costuma designar como o "outro-da-eu". Efetivamente, o campo dos afetos ou a dimensão do sensível sempre esteve aí, com os artistas, os poetas, os amantes, os visionários. Originariamente, também com os inventores da racionalidade filosófica, como Platão e Aristóteles, para os quais o pensamento nasce de um pathos, presente nos sentimentos de medo, curiosidade, preocupação ou espanto (thaumatzein) diante do mundo e das coisas. A este pathos, tanto Max Scheler quanto Martin Heidegger chamam de disposição ou situação afetiva (Befindlichkeit), atribuindo-lhe um caráter fundamental no exercício do pensamento, por ser o elo entre ele e a vida. Já Henri Bergson opta pela intuição como uma espécie de traço vital entre a racionalidade e o instinto que possibilita a emergência da reflexão filosófica. Tanto a intuição quanto o afeto constituem mesmo a base de doutrinas éticas ditas "emotivistas", a exemplo de Scheler, para quem os valores (o justo, o bem, o mal, etc.) surgem de intuições irredutíveis à pura razão e à cognição discursiva. No pensamento de Scheler", tem lugar especial a "preferência" como um tipo de ato que mostra a graduação de um valor (dentro de uma escala diferenciada de valores, dos mais altos para os mais

32. Cf. Scheler, Max. Ética - Nuevo ensayo de fundamentación de Occidente, 1948.

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dei pensamiento

ético. Revista

baixos) a partir de uma sensibilidade axiológica primeira. Ou seja, a partir de uma percepção originária - que se entende como uma percepção ou uma "escuta" (Vernehmen em alemão), e à qual Scheler atribui o mesmo nome que Pascal, "ordre du coeur" - pode-se acompanhar o conhecimento da altura relativa de um valor. Essa experiência é, para ele, "emocional", o que obriga a distinção entre a objetividade de uma norma moral e a objetividade de um fato. É uma distinção trabalhada primordialmente pelo círculo discursivo da filosofia stricto-sensu. Heidegger, por exemplo: na sua visão, o que as ciências nomeiam como "irracional" é apenas um ponto cego da teoria. Na realidade, o dito irracional caminha junto com a racionalidade - Platão chega mesmo a admitir, no diálogo Fedro, o caráter benéfico de quatro espécies de loucura, tidas como dons divinos. Mas a questão é igualmente pontuada pelos "pais fundadores" do moderno pensamento social. O próprio Augusto Comte não deixa de observar em seu Cours de philosophie positive que a verdadeira qualidade do positivismo não era a de tomar os homens mais sistemáticos, e sim mais "simpáticos" ou sinergéticos. Quanto ao positivista Émile Durkheim, que faz da racionalidade o modelo teórico e prático do entendimento social e da virtude humana (já que o "social", seu suposto objeto científico, integraria e regularia racionalmente os indivíduos), também não deixa de acentuar - particularmente em sua obra posterior ao início do século XX - que todo e qualquer tipo de razão assenta-se em bases emocionais. Daí a importância por ele atribuída às crenças, seja na religião, seja nas práticas de magia, em que as relações de causalidade, mesmo quando predominantes, contêm algo de mistério ou de indeterminação, capaz de resistir às medidas da razão suficiente. E convém não esquecer que Comte acabou convertendo o seu grande sistema de racionalização do mundo, o positivismo, numa religião. Sem dúvida, o pensamento alemão (Dilthey, Simmel, Weber) é o mais explícito na oposição às concepções causalistas que possam desembocar no determinismo social. Weber, a quem se tenta entronizar como pai da racionalidade instrumental moderna por conceber a racionalização como um destino, põe em dúvida a imanência da racionalidade ocidental expressa no capitalismo, apontando para o quanto de irracional existe no homem posto em função de sua empresa e não o inverso. Diz ele: "A racionalidade é um conceito histórico que encerra todo um mundo de oposições. Cabe-nos pesquisar de qual espírito nasceu esta forma concreta de pensamento e de vida racionais: a partir do que se desenvolveu essa idéia de profissão (BerufsGedanke) e de devotamento ao trabalho profissional (Berufsarbeit) - tão irracional, já vimos, do ponto de vista eudemônico do interesse pessoal- que 40

foi, contudo, e que permanece um dos elementos característicos cul tura capitalista=".

de nossa

Por outro lado, ainda que a teologia cristã tenha partido do racionalismo neoplatônico, a fé cristã, responsável pela cristianização do Ocidente, sempre teve mais a ver com os sentimentos de compaixão, misericórdia e com os valores afetivos da caridade (quando não com as paixões genocidas que levaram ao extermínio de pagãos) do que com a razão teológica. Kierkegaard, aliás, em sua recusa da totalização racionalista empreendida por Hegel, não se cansa de mostrar como as mediações racionais da ética entre sujeito e objeto são subvertidas pela fé religiosa. Diz ele: "O cristianismo é espírito, o espírito é interioridade, a interioridade é subjetividade, a subjetividade é essencialmente paixão, e no seu grau máximo, um interesse infinito, pessoal e apaixonado por sua própria felicidade eterna?". Para este anti-hegeliano radical, a fé religiosa, fenômeno particular e específico, suspende "teleologicamente" a dimensão universal-ética, a exemplo de Abraão (cf. Temor e tremor) que, dispondo-se a sacrificar Isaac como prova de fidelidade a Deus, transpõe a cômoda simetria individual e social da ética e arrisca-se ao abismo da razão e da linguagem. Não raro, porém, a própria razão emerge do afeto. Por exemplo, um jovem convocado para o serviço militar obrigatório pode vir a ser um soldado apaixonado pelo Exército, mas nada elide o fato de o recrutamento ter sido uma operação de força, independente de qualquer racionalidade por parte do recruta. Se trocarmos de operação, substituindo a força pelo convencimento, desponta a racionalidade do ato. É o convencimento, a persuasão, a edução, ou qualquer outro nome dado a isso, que preside à racionalidade. O afeto vem primeiro e induz à arquitetura racionalista. Isto não quer dizer que se tomar soldado seja um acerto existencial, e sim que há racionalidade na coerência entre essa condição e os fatos afetivos (emoção, credulidade, desejos) ao redor da decisão favorável à vida militar. É de conhecimento corriqueiro o fato de que, a despeito de sua sofistiação racionalista, muitas das doutrinas ou das ideologias que marcaram a ultura ocidental atraíam inicialmente os seus cultores por pressões mais emocionais do que propriamente intelectuais. Quantos não trilharam o caminho do marxismo revolucionário em virtude da compaixão para com os oprimidos ou os desfavorecidos? E quando se concebe a filosofia como ati-

33. Weber, Max. L'Éthique protestante et I'esprit du capitalisme. Plon, 1964, p. 7. 34. Kierkegaard, Soren. Conduding unscientific posfscripf. Princeton, 1941, p. 33. Cf. Eagleton, erry. A ideologia da estética. Zahar, 1990, p. 136.

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vidade emancipatória no plano da reflexão, não está aí implícita a paixão pela liberdade? O mesmo ocorre com as paixões religiosas que, freqüentemente, atingem o paroxismo fundamentalista. Um bom exemplo é o fundamentalismo islâmico em regiões de escassa tradição escrita. O islamismo é sabidamente uma religião de vinculação visceral ao Livro, o Corão, revelado ao profeta. Já na primeira surata, o arcanjo Gabriel, diante da resposta do profeta de que é analfabeto, ordena-lhe, todavia, ler "em nome do Senhor". A fé muçulmana e a leitura são, em princípio, inextricáveis. Entretanto, em regiões do mundo sem nenhuma tradição escrita, pode ocorrer mais a "emoção da letra" do que a sua escuta racional, privilegiando-se assim apenas um dos modos possíveis de conhecimento. É que aparecem na história do pensamento muçulmano três grandes modos de conhecimento assim definidos: a) o comentário, que se vale principalmente do recurso da analogia e implica erudição lingüística, assim o conhecimento dos exegetas tradicionais; b) o racionalismo, que se baseia na demonstração e c) a mistica aliada ao racionalismo, que lança mão da intuição sensível, ou seja, parte do assentimento entendido como submissão ao saber do Livro, mas se complementa por meios intelectuais diversos". O fundamentalismo caracteriza-se por um assentimento irrefletido ao Livro, sobrepondo o sensorialismo (a "emoção da letra") às práticas da controvérsia, que foram intelectualmente estimulantes para o pensamento muçulmano clássico, o mesmo que desenvolveu a matemática, a medicina, a ótica e transmitiu à cultura cristã a filosofia grega. O conteúdo do Livro impõe-se, assim, à consciência do crente como algo sensorial, como puro emocionalismo dogmático. Com os evangélicos, nas empobrecidas zonas periféricas da América Latina, registra-se algo semelhante. Todo este processo tem, na verdade, escopo mais amplo do que o religioso. Especulando sobre como chegamos a dizer que sabemos ou temos certeza de alguma coisa, Wittgenstein mostra que "toda verificação do que se admite como verdade, toda confirmação ou invalidação acontecem no interior de um sistema. [...] O sistema não é tanto o ponto de partida dos argumentos quanto o seu meio vital'r". Ele toma como exemplo o adulto que diz a uma criança já ter estado em determinado planeta. Crédula, a criança

35. Cf. Oussedik, Fotmo. Sovoir et roison dons I'occident musulman. In: Dioqêne , n. 197, jan.mor./2002, p. 65-79. 36. Wittgenstein, L. Op. cit., p. 51.

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rejeita a princípio outros argumentos contrários, mas, diante de uma certa insistência, pode terminar se convencendo da impossibilidade de tal viagem. O filósofo indaga então se a reiteração não é exatamente a maneira de se ensinar uma criança a crer ou não crer em Deus, e daí, a partir de qualquer uma das crenças, se produzirem razões aparentemente plausíveis. Wittgenstein não está, de modo nenhum, atribuindo qualquer valor cognitivo à estética (por ele identificada com a ética). Mas para começarmos a crer em alguma coisa, diz, é preciso que funcione aquele "meio vital" dos argumentos, que não consiste de uma proposição isolada, mas de um "inteiro sistema de proposições", mutuamente apoiadas, de tal maneira que "a luz se expanda gradualmente sobre o todo". O que faz fixar-se a crença não é uma qualidade intrínseca de clareza da proposição, mas a solidez do sistema. Não se trata, portanto, de saber o que se diz saber, e sim de aceitar como solidamente fixado aquilo que se sabe. E por que se fixa? Por confiança na autoridade das fontes, por aquilo que se transmite de uma certa maneira, isto é, no interior de uma totalidade, um meio, experienciado como vital, por ser fonte de razoabilidade e afeto, logo, de convencimento. Diz ele: "É assim que eu creio em fatos geográficos, químicos, históricos, etc. É assim que eu aprendo ciências. E claro, aprender apóia-se naturalmente em crer,,37.Dizer que se sabe alguma coisa equivale a ter a coisa como certa, mas a certeza está em quem crê, logo numa dimensão indefinida ou obscura, e não no fundamento racionalista e transparente da crença. Esta argumentação é importante para entendermos um aspecto da influência exercida pela mídia sobre os indivíduos. Se aceitarmos como vital a experiência da realidade criada pelos dispositivos técnicos e mercadológicos da comunicação, segue-se que os seus efeitos de convencimento têm uma especificidade, não necessariamente afinada com a razoabilidade tradicional. Vale citar o fato de que muita gente, em lugares diversos, recusava-se a acreditar no desembarque do homem na lua, transmitido pela televião. Ante a indagação de um pesquisador sobre se não percebia que se tratava da transmissão de algo efetivamente ocorrido na realidade, um espectador respondeu: "Sim, mas é televisão!" Ou seja, o telespectador acreditava na televisão, mas não forçosamente na realidade extramidiática, supostamente objeto da transmissão. A forma de vida instituída pela mídia é um outro meio vital, também fonte específica de razoabilidade e afeto.

37./bid.,

p. 63.

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A força da estesia A dimensão do afeto sempre foi ideologicamente tratada como o lado obscuro, senão selvagem, do que se apresenta como o rosto glorioso e iluminado do entendimento, ou seja, do principal procedimento da razão. Esta, entronizada pelo ascetismo judaico-cristão e pelo pensamento liberal-utilitário, proclama-se parceira do espírito e alheia ao corpo. Mas sempre se teve razoável consciência de que a eficácia da razão, em determinados tipos de ação humana, depende de tal lado obscuro, portanto dos afetos. Por exemplo, a eloqüência como apelo ao lado emocional do discurso argumentativo faz Hobbes dizer que "sem a poderosa eloqüência, que assegura atenção e consenso, a razão seria pouco eficaz". De fato, desde a Antiguidade grega, sabem os grandes oradores que a mais poderosa eloqüência é aquela que se vale da paixão, mas controlando-a calculadamente, como no caso dos variados recursos recobertos pela retórica clássica. No campo desta técnica política de linguagem, os tropos ou figuras de sentido sempre constituíram excelentes recursos de mobilização emocional do interlocutor pela palavra. Mas a mesma desconfiança que sempre se teve para com a esfera dos afetos acompanhou de perto o descrédito da retórica, desencadeado pela sua imagem negativa nas obras de Platão e Aristóteles. Uma retórica tem como objetivos persuadir - objetivo racional se tomado no sentido "pascaliano" de convencer mediante um argumento impecável- e agradar (aspecto afetivo ou irracional), ou seja, emocionar. Dessa arte foram mestres na Antiguidade ateniense sofistas como Górgias, Protágoras, Trasímaco, Prodico, Hippias e outros, que hoje se conhecem por intermédio da crítica platônica e aristotélica. Havia mais de uma retórica, porém. A psicagogia (psychagogein = conduzir ou iniciar a alma), por exemplo, representava no século V a.c. uma escola à margem da primeira retórica oficial de Tisias e Córax: em vez de tentar convencer pela verossimilhança, buscava a atração emocional pela palavra adequada. Platão atacava particularmente o ponto de vista de que, na arte de pensar, a busca da verdade pudesse confundir-se com a busca do belo. No entanto, como bem se sabe, nem ele, nem Aristóteles dispensavam o trabalho afetivo da linguagem, em especial em sua forma psicagógica. Platão concebia a existência de dois tipos de retórica, a logografia e a psicagogia, reservando aos sofistas a primeira, entendida como técnica de convencer a qualquer custo, para além da seriedade intelectual; a segunda, bem louvada no Fedro, é propriamente a retórica filosófica, portanto a "boa retórica", cujo método é a dia44

lética e cuja finalidade é a busca da verdade para bem formar os espíritos. Com Aristóteles, autor de tratados de retórica, esta arte é redefmida como uma técnica de argumentar, com o auxílio de provas racionais, mas também da psicagogia, herdada de Platão e integrada na retórica aristotélica. Na dialética platônica ou aristotélica é perfeitamente lícito apelar-se para as sensações, portanto para uma retórica que inclui estados ou disposições psíquicas. Às sensações externas e internas produzidas no corpo e das quais o indivíduo tem consciência, refere-se o verbo grego aisthanomai, traduzido pelos latinos como sentire. A percepção sensível de algo é a faculdade anímica atinente àqueles que Platão e Aristóteles chamaram de aistheta. Platão hierarquizava, porém, os modos de sensibilidade. Isto fica muito claro no diálogo Íon, onde Sócrates se empenha em demonstrar a um rapsodo (declamador público de poemas homéricos) que não existe propriamente uma arte rapsódica, mas uma aptidão sensível de segunda ordem. Por "arte" o filósofo designa o domínio de regras lastreadas por um saber racional, uma episteme. Para ele, a interpretação rapsódica, mas também a criação poética, não passam do elo de uma cadeia: o poeta recebe a inspiração da Musa, transmite-a ao rapsodo que, por sua vez, a comunica ao público. O dom de interpretar, falar sobre Homero ou qualquer outro poeta decorreria de uma força divina, o entusiasmo, análoga à do imã, chamado por Sócrates de "pedra de Heracléia". Diz ele: "Todos os poetas épicos, com efeito, os bons poetas, recitam todos esses belos poemas, não precisamente graças a uma arte, mas por estar inspirados e possuídos por um deus. Outro tanto há que se dizer dos bons poetas líricos: da mesma maneira que as pessoas que são presas do delírio dos coribantes não são donas de sua razão quando dançam, tampouco os poetas líricos são donos de sua razão quando compõem esses belos versos" (Íon). Seja neste diálogo, mas também no Fedro e no Ménon, Platão opõe à episteme o delírio sagrado ou a faculdade emotiva do ser, que se inscreve num aspecto particular da aisthesis.

É verdade que o conceito de estética pertence à modernidade européia. Mas Baumgarten, que o inventou como "ciência do modo sensível de conhecimento de um objeto", não restringia a idéia de arte ao que depois se passou a entender por essa palavra ("artes do belo", "belas artes"i8. Ao criar a designação de "estética" - o conhecimento da estesia - em vez da também possível "poética filosófica", ele pretendia mostrar a existência de uma gnoseologia da sensação ou da percepção sensível, irredutível ao saber lógico.

38. Cf. Boumgorten, Alexonder Gottlieb. Esthétique. L'Herne, 1998.

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~-----------------------------------------------------------------------Estética ou estesia são de fato designações aplicáveis ao trabalho do sensível na sociedade. É um tipo de trabalho feito de falas, gestos, ritmos e ritos, movido por uma lógica afetiva em que circulam estados oníricos, emoções e sentimentos. A emoção é o que primeiro advém, como conseqüência da ilusão que fazemos de caminho para chegar à realidade das coisas. "A alma não conhece sem fantasia", ensina Aristóteles (Sobre a alma), indicando que inexiste o triunfo absoluto do lagos sobre o mythos. Mesmo no interior da ciência, o mítico ou o ilusório podem fazer-se presentes, como sustenta Serres: "Um saber sem ilusão é uma ilusão toda pura. Onde se perde tudo e o saber. Trata-se mais ou menos de um teorema: não há mito puro senão o saber puro de todo mito. Eu não conheço outros, tanto os mitos são cheios de saber e o saber de sonhos e de ilusões'v". É da ilusão ou da fantasia, que resultam as emoções (bem entendido, emoções no sentido dado pela tradição de pensamento filosófico e psicológico, e não no sentido neurobiológico de mobilização neuronal arcaica), esses afetos que, embora constituídos em via de acesso, impedem a visão adequada da singularidade do real. Não há lucidez no transbordamento emotivo, conforme atestam desde os pensadores da beatitude oriental até os teóricos da moderna neurobiologia, sem esquecer as episódicas incursões poéticas nesta temática".

A exigência de lucidez na experiência afetiva é característica, como veremos, de determinada corrente da tradição interpretativa hindu, mas permeia momentos importantes do pensamento ocidental. Rousseau, por exempl041.Para ele, a piedade, uma afecção social básica, é fundacional na humanidade e na cultura, mas só na medida em que é atravessada pela lucidez - pelas "luzes", em seu modo de dizer. Sem a imaginação e sem a reflexão que a acionam, afirma, "a piedade, embora natural no coração do homem, permaneceria inativa para sempre?". Notavelmente atual em Rousseau - e

39. Serres, Michel. Lo troduction. Minuit, 1974, p. 259. 40. Um exemplo é o poema da portuguesa Rosa Alice Branco: "Venha doutor ensinar-me a distinguir / a emoção do sentimento. / Guie-me para que a mente se torne clara, o espírito lúcido e a alma / - ah, talvez possamos dispensar a alma. / Enquanto espero ficarei escondida no armário / entre calor de um lado tremerei do outro, / mas no centro o coração estará a boa temperatura, / a uma tépida esperança. Porém se demorar a imobilidade / mudará as estações da roupa, as fases da lua. / Esta atracção / por si é uma maré viva, uma maré cega se não vier / ensinar-me o que é a emoção e o sentimento. / Faremos uma ressonância antes do chó, uma sonda perfurando / o insondáve\. Venha doutor dizer-me se sinto fome, / se tenho sede, ou se não passo de uma ilusâo dos sentimentos." 41. Cf. Rousseau, Jean-Jacques. Essa; sur I'origine des langues. Gallimard, 1990 [Textoestabelecido e apresentado por Jean Starobinski).

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lara fonte de inspiração, ainda que inconfessada, para posições neopragmatistas como as do norte-americano Richard Rorty - é a sua concepção de comoção piedosa como uma "potencialidade adormecida" à espera de ser espertada pela identificação social, reflexiva e empática com o Outro: "Só - fremos na medida em que julgamos que ele sofre; não é em nós, é nele e sofremos". otável ainda é que em Rousseau se faz presente a intuição de que, com desenvolvimento da reflexão e da cultura, se esvanece a força imaginativa ~ afeto, perdendo-se a dimensão do Outro como diferença sensível e motidora. De fato, na contemporaneidade, quando o mundo se faz imagem _ r efeito da razão tecnológica, a redescoberta pública (e publicitária) do eto faz-se sob a égide da emoção como um aspecto afetivo das operações entais, assim como o pensamento é o seu aspecto intelectual. Se por um do afirma-se a morte da Razão una e universal, que é a metafisica do penento forte e único entronizada pelo Iluminismo, por outro proclama-se _ vida das múltiplas razões particulares, e pode-se mesmo então instituir episzemicamente uma razão ou uma inteligência para a emoção.

esconfianças críticas Há margem, como se percebe, para desconfiarmos criticamente das _ oções puras e simples. Por isto P. Malapert sustenta haver lugar "para ter conta a distinção entre as emoções-choque e as emoções-sentimentos. - im como na esperança, no abatimento, na tristeza e na alegria não se tram os elementos característicos da emoção no sentido A,,43, isto é no - tido do movimento brusco ou violento.

É uma distinção análoga à que encontramos, por exemplo, uma deterada tradição do pensamento hindu, a do Advaita Vedanta (Advaita sig- a "não dualidade") transmitido por Svârni Prajnânpad, para quem toda ção, como toda e qualquer outra entidade, nasce da recusa, da não-aceição de uma situação em que você se encontra no momento presente. Se a __nação puder ser aceita, desaparece logo a emoção . este particular, não se acha o hindu distante de Kant, para quem a emo_- Affekt) - sempre cega e precipitada, à maneira de um acesso patológico ..•.uma embriaguez - é uma representação sensível incapaz de buscar sua ria finalidade. Kant abstém-se de fazer, como o hindu, uma distinção s:

.. Cf. lalande, André. Op. cit., p. 298.

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radical entre emoção e sentimento (GefühI), uma vez que apresenta o estado emocional como um grau de sentimento, ou seja, de experiência subjetiva do prazer ou do desprazer, apenas caracterizado por uma excitação sem sabedoria, capaz de levar o espírito a perder o domínio de si. Com o discurso da neurologia cognitiva, Damásio também enceta uma diferenciação entre sentimento e emoção 44. Para ele, emoção implica a mobilização de áreas cerebrais arcaicas (emoções primárias) e modernas (emoções secundárias), de modo a produzir alterações (total ou parcialmente automáticas) do estado do corpo, dentro do quadro de regulação biológica do organismo. O sentimento, por outro lado, seria a percepção dessas alterações: "O processo de acompanhamento contínuo, essa experiência do que o corpo está fazendo enquanto pensamentos sobre conteúdos específicos continuam a desenrolar-se, é a essência daquilo que chamo de um sentimento". Ressalvando-se as pesquisas de neurocientistas como Damásio e outros especialistas de renome internacional, como Eric Kandel, Prêmio Nobel de medicina de 2000, e Joseph E. LeDoux - de caráter neurocognitivo e voltadas primordialmente para o problema da influência do padrão de conexões cerebrais sobre a memória, a personalidade, a saúde e a própria origem da consciência -, há nas abordagens de cunho mais filosófico o esboço de uma concepção crítica da emoção, análoga à dos estóicos, segundo os quais "todas as emoções nascem do julgamento e da opinião". A emoção não expressa, assim, a independência de um afeto, porque surge sempre acompanhada de pensamento e representação. Ou seja, há um pensamento por trás dela, logo, uma separação entre sujeito e objeto, entre o um e o outro, e o afeto surge da fantasia ou da imagem idealizada que a subjetividade (o mental) forma de algo colocado no mundo externo. A emoção é o afeto pelo mundo próprio, que pertence por sua vez ao ego e à idéia. Mas por que aparece a emoção e não simplesmente o pensamento? Porque, diz a reflexão hindu, você não vê a coisa como ela é realmente, e então se produz reativamente uma ilusão - portanto, uma incompreensão, uma falsa idéia -, que encobre o julgamento intelectual. Quando assistimos a um pôr-de-sol com toda a amplitude das cores do céu, emocionamo-nos, porque recusamos a aparição do real tal como ele é (o sol em declínio, o sol com suas cores), projetando sobre ele idéias de beleza, que pertencem na verdade ao quadro de nossas representações culturais prévias. Mas se as cores são substituídas por nuvens carregadas de chuva, nos entristecemos, porque o céu não

44. Cf. Domásio, António. Op. cit., passim.

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mais aparece como desejaríamos que ele fosse. Na realidade, como bem ob- rva o poeta, "um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. / Ambos existem; cada um como é" (Femando Pessoa e Alberto Caeiro). A emoção resulta do desejo, como já mostraram Hobbes e Descartes, o assinalarem que ela (paixão, emoção), por implicar uma concepção do assado e referir-se a algo ainda futuro, é atinente ao desejo. Pode mesmo ser a linguagem prioritária do desejo. Carrega, assim, tanto a força capaz e dominar o intelecto quanto a ambigüidade que decorre do fato de ser rejeição de um aspecto e atribuição de privilégio a outro. A emoção positi-a (corresponde ao desejo de alguma coisa) tem como contraparte uma negativa (eu não tenho essa coisa, o que me causa mágoa). O medo é a emoção mais comum. Hobbes a põe no centro de sua teoria da sociabilidade e da política, como aquilo que é "terrivelmente originário" em todos nós, lugar de fundação do direito e da moral. E o medo é basicamente medo da morte, emoção de que somos sujeitos e, ao mesmo tempo, sujeitados. Isto é o que significa sermos "mortais". Adotando o ponto de ista de Elias Canetti no sentido de que a centralidade do medo faz a graneza e, ao mesmo tempo, o caráter insustentável do pensamento de Hobbes, E posito afirma: "Este algo que sentimos como nosso - e que justamente r isto tememos ao extremo - é exatamente o medo. É de nosso medo que temos medo, da possibilidade de que o medo seja nosso, que seja propriaente nós a ter medo,,45. Principalmente em obras como De cive e De homine, Hobbes concebe o medo da morte como o contrário do que Freud viria a chamar de pulsão de ida, ou seja, o conatus sese praeservandi, força ou instinto de preservação que, exatamente por existir, deixa entrever a emoção que atravessa radicalmente os seres humanos: o medo de não mais viver. O caráter fundacional esse afeto aparece ainda mais claramente para Hobbes na política, em cuja própria origem se constitui. Tem, portanto, uma função não apenas destrutiva, mas igualmente construtiva (o que faria a diferença entre medo e terror), na medida em que propicia a agregação comunitária, cria as demandas de proteção ao Estado e toma necessários o direito, a moral, assim como toda e qualquer instituição voltada para a regulação do temor mútuo que os homens têm uns dos outros. Para a tradição hindu, essa é igualmente a emoção crucial, tanto que nos Upanishads - um dos principais conjuntos de textos da metafisica hindu -,

45. Esposito, Roberto. Communitas - Origine et destin de Ia communauté.

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PUF, 2000, p. 36.

brahman (Si supremo, alma universal ou, simplesmente, a divindade que se faz presente em cada atman, ou alma individual) é definido como abhayam: sem medo. Ser livre é liberar-se da emoção do medo, que pode aparecer sob formas diversas, como o ciúme, a raiva, a arrogância, etc. Da mesma forma que Hobbes, o hindu sustenta que "o medo é a morte" (bhayam vai mrtyu), ou seja, uma emoção definida por atração negativa, já que o medo de morrer é uma atração pelo inevitável, por aquilo a que não se escapa. Não há como deixar de registrar a semelhança entre as concepções da tradição hindu, da doutrina de Hobbes e as elaborações de Freud em torno da teoria do afeto, no que diz respeito particularmente à angústia. Para o inventor da psicanálise, a angústia - investimento do ego por sinais de desprazer frente a uma ameaça ou a um perigo impalpável- assenta-se exclusivamente no ego, em função de uma causa externa ou interna. O que em Hobbes é medo originário, decorrente de uma situação de perigo imemorial, recebe em Freud o nome de angústia, como evocação egóica de uma ameaça primitiva. Seja qual for a inspiração teórica, vale insistir no aspecto negativo dessa emoção fundamental. O medo é a reação (uma recusa, portanto) à atração positiva que têm os homens pela morte. É, assim, a forma negativa de um desejo, oriundo do conhecimento que se tem do caráter inevitável da morte. Ao recusar-se o desejo, a emoção do medo aparece. Não se vive, todavia, sem emoções. Pensando-se em termos neurobiológicos, à maneira de Damásio, elas são fundamentais para a "máquina homeostática" do corpo, que assegura a estabilidade do organismo em face das mudanças ambientais. Do ponto de vista psicológico, sejam positivas ou negativas, elas estão aí, constituem a vida e têm de se expressar. Se aceitarmos o modo de pensar hindu, reconhecemos esta evidência, mas também que cada emoção produz uma reação emocional em cadeia, que nos impede de sentir plenamente, a menos que as percepções da paisagem corporal denominadas "sentimentos" intervenham para resolver os problemas não-padronizados, fora do alcance das emoções. O nazismo, o fascismo e o stalinismo foram grandes mestres no uso das estratégias emocionais, na trilha dos grandes impérios do passado. Mas diferentemente destes com suas aristocratizações dos ícones, foram estratégias tecnológicas de democratização das emoções, que incitavam à substituição da ambivalência da experiência viva por ideais pré-fabricados e estetizados - portanto convertidos a sensações e emoções - em bandeiras, desfiles, uniformes, fogueiras, simplificações artísticas, literárias e intelec-

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tuais, etc. A emoção pelo dever-ser implica quase sempre o desprezo pelo que o homem realmente é, com suas contradições e sua diversidade. São estratégias semelhantes ao manejo industrialista das sensações e emoções hoje realizado pela mídia de espetáculo ou pela cultura de massa em geral. Nos grandes shows de música popular, nos folhetins televisivos, na literatura de grande consumo, nos programas humorísticos de tevê, a emoção fácil é o produto com que se adulam os públicos, levando-os a risos e lágrimas fáceis. A emoção está aí a serviço da produção de um novo tipo de identidade coletiva e de controle social, travestido na felicidade pré-fabricada contra a qual adverte o poeta: "Ai de ti e de todos que levam a vida / A querer inventar a máquina de fazer felicidade!" (Fernando Pessoa e Alberto Caeiro). Mas é possível também interpretar o ethos ou a atmosfera afetiva da mídia, a exemplo de Vattimo, como uma "intensificação de si mesma", com vistas à formação de um sentimento forte de comunidade. Por aí se vê que a palavra e o conceito de emoção oferecem problemas. É preciso, pois, rediscuti-los, contextualizando-os, do mesmo modo como se rediscute a palavra amor, quando se trata de fazer a distinção entre desejo amoroso e amor genérico pelos outros.

Lucidez e sabedoria prática Na verdade, o vocabulário, ou a terminologia em sua ampliação e especialização, é sempre o território onde se desenrolam as lutas tanto pelo controle quanto pelo aprofundamento das representações. É possível reinterpretar o plano tosco e imediato da emoção em função do aprofundamento da sabedoria prática (isto mesmo que, em Aristóteles, se denomina phronesis), com vistas ao bem agir ou a uma atitude reconhecidamente epistêmica. Assim, no interior da própria hegemonia metafisica da razão, pode-se indagar sobre a "razoabilidade" das paixões, quando se leva em conta que existe uma osmose entre a episteme e o pathos e que os afetos podem organizar-se a partir de um cânone ou de um padrão até mesmo racionalmente forçado. Nesse aspecto, Parret chama a atenção para a função "quase judicativa" da paixão: "As razões da paixão são valores e a paixão sempre regulamenta os "estados de coisas", que são objeto de valoração. No que conceme à osmose da episteme e do pathos, Hume atribui às crenças o poder de competir com as impressões, conferindo-lhes uma influência análoga sobre as paixões. Basta que as crenças se igualem em força e vivacidade às impressões para que tenham esse mesmo poder: a simples concepção vigorosa e intensa de 51

uma idéia já é suficiente. Mas o inverso também é verdadeiro. Hume escreve que "se a crença é quase absolutamente necessária para despertar nossas paixões, também as paixões, por sua vez, favorecem grandemente as crenças'T". Hume está-se referindo à relação entre crença e paixão. Para incluir na relação o juízo seria preciso, na opinião de Parret, priorizar a valoração como um ponto de partida para a compreensão da razoabilidade do pathos. Desta maneira, as paixões são também avaliativas, ou seja, implicam um juízo, porém anterior à reflexão. Diz ele: "A 'luz' em que o sujeito de uma paixão 'vê' o objeto inclui uma avaliação que dá ao sujeito a possibilidade de utilizar uma escala de medidas somente no caso mais 'objetivo'. Mas a avaliação permanece mais subjetiva do que objetiva, o que está ligado ao caráter de apetite que é inerente à paixão e ao fato de que a emoção é dirigida por um desejo, o que obscurece imediatamente qualquer cognição pura,,47. Essa "lucidez" e essa "visão" estão no ceme do pensamento hindu, quando se trata de ultrapassar o obscurecimento inerente às ilusões do maya ou da consciência agarrada aos dualismos das aparências imediatas. Para o hindu, a emoção atravessada pela lucidez, isto é, pela experiência de se ver para além da dualidade, dá lugar ao sentimento. Este termo, aliás, mesmo no discurso da neuropsicologia (Damásio), é o que se julga adequado para designar a percepção da mudança corporal pela emoção. Tudo isso implica dizer que é possível estabilizar o campo da afetividade, tomando lúcidas as emoções, transformando-as em sentimentos. De forma mais simples: a emoção caracteriza-se por uma expressão compulsiva e excessiva, por um apego ao que é por demais particular, enquanto o sentimento define-se como afecção deliberada, consciente, refletida, lúcida e serena. O sentimento é a emoção lúcida. No empenho individual ou coletivo e pela serenidade, é possível uma crítica do transbordamento emotivo pela lucidez que conduz ao sentimento. Pelo sentimento passamos da dissociação entre sujeito e objeto a uma unidade, mesmo que provisória, entre os termos disjuntos, entre o um e o "alter". A densidade e a verticalidade do sentimento contrapõem-se, assim, ao horizontalismo e à precariedade afetiva da emoção. Mas como as emoções de todo tipo existem, é mais do que imperativo, como já se frisou, que se exprimam. Elas são os sinais de que o intelecto caminha no sentido das falsas crenças e dos enganos. Quanto mais emoções

46. Parret, Herman. A estética da comunicação -Além da pragmática. Unicamp, 1997, p. 121 .

«t.tu«, p.

123.

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sentirmos, mais desperto estará o sentido da consciência identificada com a orporeidade. Bloqueá-Ias, impedi-Ias de se exprimir, seria fechar em si mesmo a porta de passagem para a revelação de uma dimensão do real. Por conseguinte se aceita a emoção, permite-se a sua expressão, enquanto fenõeno inscrito na realidade, mas se busca ultrapassá-Ia pela "simpatia", pelo e se resolve como sentimento amoroso do mundo, logo por aceitação ir'- trita da diferença. Aceitação irrestrita significa sem julgamento intelec1, sem a mediação de um termo comparativo. Isto não quer dizer que a razão esteja totalmente ausente do processo. Ela apenas não se coloca em primeiro plano, em qualquer dos vários sen'dos que se lhe possa dar (desde a concatenação lógica dos argumentos _speculativos até aracionalidade que preside ao entendimento no senso coum). Coloca-se primeiramente, sim, o afeto ou dinâmica de circulação ime'ata das potências do corpo, que se pode associar a uma "razoabilidade" ações. Assim, nos termos mitológicos de As bacantes, de Eurípides, o er racionalista e ateu - no limite, delirante - de Penteu termina dando gar à liberdade da paixão de Dioniso. Que importância tem toda essa problemática do sensível ou dos afe• - para o pensamento contemporâneo? Em primeiro lugar, no campo es- o da filosofia, levar em consideração a dimensão sensível implica alguproximidade com estratégias não-representacionais para se descrever o amento e a linguagem. São estratégias caras, por exemplo, aos pensares pragmatistas, empenhados em eliminar a distinção entre conhecer as _ ' as e fazer uso delas. Explica Rorty: "Partindo da afirmação de Bacon que todo conhecimento é poder, os pragmatistas prosseguem afirmando _ e poder é tudo o que há no conhecimento - que afirmar conhecer X é afirser capaz de utilizar X, ou ser capaz de colocar X em relação com alguoutra coisa. Para dar plausibilidade a essa afirmação, entretanto, eles que se contrapor à idéia de que conhecer X é uma questão de estar rela_ onado a algo que é intrínseco a X, enquanto que utilizar X é uma questão íe estabelecer uma relação extrinseca, acidental, com X,,48. .3

Abolir a distinção entre o intrínseco e o extrínseco, isto é, entre um núleo duro (suposta essência) de X e a sua periferia (acidentes, relações, apa-rências) é o programa teórico da posição que Rorty identifica como antiessencialismo. Para seus propugnadores, tudo o que há a ser conhecido de qualquer objeto é tão-só o enunciado nas sentenças que o descrevem, expli-

48. Roliy, Richard. Pragmatismo -A filosofia da criação e da mudança. UFMG, 2000, p. 60-61.

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citando a sua relação - por vezes, uma rede infinita de relações - com outros objetos. Como frisa Rorty, "insistir que há uma diferença entre uma ordo essendi não-relacional e uma ordo cognoscendi relacional é, inevitavelmente, recriar a coisa-em-si kantiana,,49. Inexiste, assim, no trabalho do conhecimento, qualquer primado da verdade (a busca de uma intrínseca razão última das coisas, da coisa-em-si) sobre a utilidade. Mesmo conscientes de serem muitas as coisas que os homens são incapazes de controlar, os antiessencialistas rejeitam a hipótese de um mistério do mundo, de poderes capazes de transcender a ordem humana. É a concepção de um mundo desencantado no que diz respeito ao ultra-humano, mas receptivo da idéia do encantamento diante das grandes realizações da imaginação humana. O que não se conhece e, portanto, não se controla, estaria apenas aguardando a sua adequada instrumentação técnica, ou seja, aquilo que, dando margem à utilização, possibilitará ao mesmo tempo o seu conhecimento. Para a posição neopragmatista norte-americana - avatar de pensadores como John Dewey, Henry James e Charles Sanders Peirce -, interessa a inquirição sobre os afetos, na medida em que sirvam como maneiras de se desfazer o dualismo entre conhecer e utilizar. Exclui-se qualquer possibilidade de um "conhecimento por familiaridade" (terminologia empregada por Bertrand Russell), isto é, não-descritivo, alheio à atitude sentencial, mas se admite implicitamente que o não-representacional e o não-ocular (por exemplo, um afeto), geralmente associados apenas à dimensão do fazer, integram também a esfera do conhecer. Não há qualquer razão inefável ou qualquer essencialidade humana (a exemplo da razão cultuada pelo Iluminismo) por trás da sensibilidade, e sim contingências, que presidem à identificação dos indivíduos com outros dentro de circunstâncias históricas precisas, estimulando-lhes a potência de agir pela mobilização afetiva. Esta não é decididamente a posição de Jürgen Habermas, um dos mais influentes pensadores contemporâneos, que se vale da pragmática da linguagem para lastrear a sua teoria do agir comunicacional. Mesmo distante dos essencialismos mentalistas e naturalistas, ele ainda se atém a uma essência, a razão iluminista, supostamente capaz de sustentar o conhecimento da sociedade e do homem. Mais ainda: dela poderia advir a realização, sempre obstaculizada, de ideais constantes do projeto civilizatório da modernidade, como os de igualdade e liberdade. Para isso, Habermas ataca o paradigma cartesiano do sujeito da consciência e vai assentar a racionalidade

49./bid., p. 67.

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_-gi ca da intersubjetividade, preconizando uma ética do discurso, cria ser capaz de responder à pergunta sobre as fontes da normativiestabelecer as condições para a compreensão mútua. - da que inspirado pelo imperativo categórico de Kant - no tocante ao .n::;-~salis· mo das máximas de ação -, Habermas dele se distingue quando -. da fundamentação das normas morais: não mais a solipsista decisão . obre a legitimidade das normas, e sim a sua justificação pragmáti_--_c:==u',:"I tica, a posteriori, por meio da argumentação no espaço públi:::...sa racionalidade substancial imanente à linguagem e à comunicação, dependente de uma perspectiva intersubjetivista (em que o sujeito __ . em primeiro plano, mas é preservado) prescinde, na teoria haber.••.••. ~ua, de qualquer apelo à dimensão sensível. A sua visão de solidarie- que junto com o poder e o mercado constitui um dos mecanismos de Bre'~lçào das sociedades complexas da contemporaneidade - acomoda n::z:~LS. valores e comunicação, mas não se detém sobre nenhuma intie intersubjetiva de natureza afetiva.

razões da produção pesar de toda a influência filosófica do "kantismo ampliado" de Haber- o pensamento classificado como pragmatista ou neopragmatista ganha visibilidade neste momento de transição histórica, de Baixa Moderni~ ou de mutação civilizatória, em que, "para produzir, precisa-se cada vez de razão e sempre mais de afeto: não apenas as teorias e as práticas tec. gicas nos confirmam isso positivamente; negativamente também, nos as doutrinas psicológicas e as práticas psiquiátricas't'". ;.o>

_ra realidade, é bem mais amplo do que o neopragmatismo americano o o do pensamento que vincula o corpo e o afeto às formas emergentes _redução e de poder. Já na original análise fenomenológica que, desde '0 do século XX, o sociólogo alemão Georg Simmel faz da socieda~ capitalista, aparece como atitude teórica central a atenção dispensada à a e aos sentidos. Por sua vez, a maior parte da obra dos franceses Gilles leuze e Félix Guattari procura mostrar como a velha sociedade disciplidissecada por Michel Foucault) dá hoje lugar à "sociedade de contro~-. onde a trama do poder ocupa o psiquismo e o corpo dos indivíduos, por eio do desejo.

egri, Toni. Exílio seguido de valor e afeto. IIuminuras, egri & Michael Hordt. Record, 2000.

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2001, p. 11. Ver também

Império,

Esse "controle" no lugar da disciplina, correspondente ao deslocamento da ênfase produtiva na necessidade para a ênfase no desejo, implica um novo modelo de regulação social e, portanto, um novo regime de visibilidade pública ou de comunicação, cuja gênese remonta à organização fordista do trabalho, no início do século XX. É a época em que o produtor começa a analisar intensivamente o comportamento do consumidor e em que, como narra Mattelart, "o capitão de indústria" converte-se em "capitão de consciência". Afirma ele: "Esta transformação contribuiu para deslocar o centro de gravidade do controle social do trabalho para o entretenimento, do esforço para o prazer, do fato para o onírico, do racional para o desejo?". Estabelece-se uma certa equivalência entre a noção de acesso aos bens de consumo por meio do mercado e a de democracia e ideal democrático. O que se tem chamado de "indústria cultural" ou "cultura de massa" é de fato um espaço, de natureza estética e moral, destinado a sustentar uma "forma de vida" (um bios, na terminologia aristotélica), com suas organizações e suas práticas, necessária à circulação dos afetos requerida pelo capitalismo de consumo, pós-fordista. Mas esse espaço transforma-se com tal rapidez que já se faz imperativa a distinção entre a estandardização, característica da produção de massa afim ao capitalismo industrial, e a codificação, que não visa, como a primeira, à circulação mercantil do maior número possível de produtos idênticos, e sim a "jogar com combinações e introduzir variações com o objetivo de obter produtos relativamente diferentes, embora do mesmo estilo"s2. Está aí implicada uma mutação capitalista, uma espécie de "nova economia", em que a dimensão imaterial da mercadoria prevalece sobre a sua materialidade, tomando o valor social ou estético maior do que o valor de uso e o valor de troca. Valores simbólicos e afetos ganham o primeiro plano tanto na economia quanto na cultura codificada. Nessa passagem da produção fordista ao pós-fordismo, quando o império se define como forma política do mercado mundial, emerge, segundo Negri, uma nova experiência de exploração do homem, em que o sujeito "não é mais um corpo que pode ser posto a trabalhar, não é mais uma alma que pode viver independentemente de valores e paixões. Dessa vez é a alma que é posta a trabalhar, e o corpo, a máquina são seu suporte". A produção é principalmente "produção de si" (aproveitamento das competências desenvolvidas na própria vida cotidiana dos indivíduos), isto é, de subjetividade, agora diretamente produtora de capital humano fixo.

51. Mattelart, Armand. Lo ínvención de Ia comunicación. Bosch, 1995, p. 349. 52. Boltanski, Luc & Chiapello, Éve. EI nuevo espírito dei capitalismo. Akal, 2002, p. 561.

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Ressoa aqui o pensamento marxista, ou mais precisamente o materialismo histórico, segundo o qual na base de toda a ordem social se acham a produção e a troca de produtos, responsáveis em última análise pela articulação dos indivíduos em classes. Toda produção caracteriza-se pela presença de um processo de trabalho (transformação do objeto em produto, extensivamente analisado por Marx no primeiro livro: O capital) e de relações de produção, que respondem pela forma histórica e concreta em que se dá o processo de trabalho. Essas são noções bastante conhecidas, mas que vale repisar, para que não se percam detalhes oportunos. É o caso da distinção entre o conceito de trabalho e o de força de trabalho, feita pelo pensamento marxista, mas ignorada pela economia política clássica. Trabalho, que se compreende como a atividade desenvolvida num processo de produção de bens, é algo que pode ser realizado por uma máquina ou por um ser humano. Força de trabalho, porém, é em princípio a energia humana empregada no processo de trabalho. A confusão entre as descrições dessas duas realidades diferentes tem sérias conseqüências econômicas53. Por outro lado, o conceito de força de trabalho pode ser ampliado e ganhar outros contornos, quando a produção - convertida pela lei mercantil do valor em razão histórica e modelo genérico de realização da vida socialé pensável como algo mais do que um modo econômico, portanto como um campo operacional ou um código de gestão da totalidade social global. Daí, a codificação, efeito da flexibilização e da mobilidade do capital, que toma possível a mercantilização de singularidades (o autêntico, o étnico, o simpático, etc.). Nesta nova configuração capitalista, a força de trabalho passa do nível da natural energia humana para o da representação ou dos signos (da "siderurgia" para a semiurgia), convertendo-se em estrutura de obediência ao código. Isto implica uma individuação conformada por padrões (coletivos) de subjetividade, operacionalmente afins à nova estrutura. E por meio dessa

53. Uma explicação clara: "Por confundir ambos os conceitos, os economistas clássicos foram incapazes de descobrir a origem da exploração capitalista. Eles sustentavam que o salário era o preço do trabalho realizado pelo operário, mas quando calculavam quanto deviam lhe pagar esqueciam-se totalmente deste enunciado e, em vez de calcular o preço do trabalho realizado (número de sapatos acabados, por exemplo), calculavam o preço de objetos que o trabalhador devia consumir para recuperar a sua força de trabalho (não só objetos materiais como: alimento, abrigo, teto, para ele e sua família; mas também objetos culturais; ródio, cinema, esportes, etc.), cf. Harnecker, Martha. Los conceptos e/ementales dei materialismo histórico. Siglo Veintiuno, 1971, p. 23-24. Por outro lado, o mecanismo capitalista da mais-valia decorre da disparidade entre o salário e a força de trabalho.

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estrutura profunda de sentido, em que se interpenetram elementos econômicos, políticos, culturais e a própria vida humana em sua nua substância biológica - em termos da Grécia Clássica, a vida como zoé, isto é, natural ou animal, e não como bios, socialmente organizada - numa verdadeira "biopolítica" total", o homem se submete, em toda a extensão de sua existência, à determinação do valor de troca capitalista. Pensador e militante político, Negri preocupa-se com os desdobramentos sutis das formas de dominação da força de trabalho, apoiando-se na teoria do valor para indagar-se como a expressão do trabalho vivo ou corporal do sujeito (a produção do valor) deixa aflorar nele a constituição mental e afetiva. De partida, ele sublinha as dificuldades da economia política clássica para medir o trabalho. Leva em conta, por um lado, que a complexidade crescente do trabalho sempre impediu a sua redução pelo cálculo; por outro que, na ordem totalizante do capital, as mediações - entre a produtividade do trabalhador e a sua absorção pelo capital, entendidas como produção, reprodução social, circulação e repartição das rendas - tomaram-se cada vez mais abstratas. Esses obstáculos decorreriam do ponto de vista do "alto", isto é, da economia política dominante. Procurando pensar "a partir de baixo", quer dizer, da vida comum das pessoas, Negri propõe a noção de "valor-afeto", que é o valor da força de trabalho definida como afeto - afeto entendido, portanto, na trilha de Espinosa, como "potência de agir". Mas entendido também, espinosianamente, como disposição interna articulada com forma de vida, com ethos, portanto. Como forma, o afeto é, ao mesmo tempo, interior e exterior, pulsão e fenômeno, o que implica levar em conta tanto ânimo quanto corpo em seus modos particulares de instalação e deslocamento no espaço. Um exemplo imediato de obstáculo é o trabalho doméstico das mulheres, plenamente afetivo, que deixa de ser contabilizado pela economia política. Um outro diz respeito à "economia da atenção", em que o valor do sujeito (afeto) é posto em sua interatividade com os serviços de comunicação. Também neste caso, a ciência econômica furta-se a contabilizar o trabalho de produção de subjetividade (quer dizer, produção de necessidades, desejos, posições do sujeito na linguagem, etc.) implicado nas tecnologias da informação e da comunicação. Furta-se, portanto, a reconhecer uma economia do afeto.

54. A temática do poder biopolítico, extensivamente trabalhada por Michel Foucault, encontra ressonâncias originais no pensamento do italiano Giorgio Aganbem.

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Não é nova, nem exclusiva do militante italiano, essa argumentação. Há cerca de três décadas atrás, Baudrillard, por exemplo, chamava a atenção para a passagem da força de trabalho a um paradigma polivalente e indiferente do nexo social, em que muda a noção de produtividade, e o próprio lazer assume uma posição operacional no sistema. Deste modo, "o trabalho (também sob forma de lazer) invade toda a vida como repressão fundamental, como controle, como ocupação permanente em lugares e tempos regulados, segundo um código onipresente. É preciso fixar as pessoas por toda parte, na escola, na fábrica, na praia ou diante da TV, ou na reciclagem - mobilização geral permanente. Mas esse trabalho não é mais produtivo no sentido original: ele não é mais do que o espelho da sociedade, seu imaginário, seu princípio fantástico de realidade. Pulsão de morte talvez?". Esta consideração interessa-nos particularmente por remeter à reflexão de Vattimo sobre a mídia, forte dispositivo de fixação dos sujeitos, enquanto comunidade afetiva ou "intensificação de si mesma como fim". O problema está em se determinar que intensificação é essa e a serviço de quê se põe. De fato, o estético "senso comum", sugerido por Kant no tocante à contemplação das obras de arte, pode reencontrar-se na esfera da mídia, mas certamente atravessado pelos conflitos políticos característicos do domínio hegemônico. Na visão de Negri, por exemplo, a economia da atenção, em que se inclui a mídia, não escapa ao domínio das condições de reprodução da força de trabalho pelo capital. Estas condições - que ficavam fora da regra capitalista durante a fase clássica de acumulação e que permitiam ao operariado constituir-se como "classe histórica" - terminaram sob o controle absoluto do valor de troca, doravante empenhado na capitalização do conhecimento e do conjunto das relações sociais e vitais, até então tidas como inapropriáveis. N a etapa clássica da acumulação capitalista, o intelectual ainda detinha algum poder como senhor de uma razão universal que, nas políticas da esquerda, deveria produzir o máximo de conscientização possível junto à agitação desenfreada das paixões revolucionárias. Hoje, como se sabe, intelectual iluminista e militante político são progressivamente neutralizados pela organização total capitalista. No horizonte da globalização, entendida como forma totalizante (mercado e vida social) do capitalismo mundial, todo valor é controlado por um sistema de trocas, sem qualquer outro compromisso além de sua positividade técnica. Inclusive o valor do sujeito, que é o afeto

55. Boudrillord, Jeon. L'Échonge symboíique et Ia morto Gollimord, 1976, p. 28.

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subsumido na interatividade do indivíduo com as máquinas de informação e comunicação. Isto se toma cada vez mais claro com a evolução das mais novas tecnologias da informação: na rede cibernética, o sujeito tende progressivamente a definir-se como usuário de serviços, que polarizam para o comércio, preferencialmente a qualquer outro tipo de motivação, a sua sensibilidade individual. Seu valor de sujeito é aquilatado por sua integração no ethos empresarial-midiático. Mais preocupado com formas de prazer como o jogo e a liberdade de expressão, Vattimo abstém-se de juízos políticos sobre a dita economia da atenção. Prefere proclamá-Ia como uma nova forma de comunidade estética, melhor ainda, estésica, na acepção de um comum do gosto ou da sensibilidade enquanto forma de vida, para além do juízo estético em sentido estrito, mas certamente nas imediações da idéia de pulsão como uma força socialmente transformadora. Na comunicação, enxerga mais o trabalho imaginário da alocução, da forma sensível, do que a racionalidade da mensagem. Ora aproxima-se, ora afasta-se de pensadores da pós-modernidade como Lyotard, Virilio, Baudrillard e outros. Aproxima-se no que diz respeito à "língua" filosófico-culturalista com que aborda a temática da estética e do corpo mobilizador de afetos. Afasta-se quanto ao tom francamente pessimista das reflexões pós-modernistas, de que Lyotard e Baudrillard constituem um bom exemplo. Especialmente no pensamento de Baudrillard, o corpo pode tomar-se uma espécie de "estandarte das pulsões", mas a sua liberação é imediatamente capturada pelo mesmo processo com que funciona a economia política. O mesmo acontece com a subjetividade associada a esse corpo "liberado",já que se acharia inscrita no valor de troca. "Assim como o trabalho só é liberado enquanto força de trabalho num sistema de forças produtivas e de valor de troca, também a subjetividade só é liberada enquanto fantasma e valor/signo no quadro de um modo de significação dirigido, de uma sistemática da significação cuja coincidência com a sistemática da produção é bastante clara. Em resumo, a subjetividade só é 'liberada' na medida em que é retomada por uma economia política", sustenta ele56. Nesta perspectiva, portanto, o corpo como lugar dos afetos (processos primários e secundários, na linguagem da psicanálise) é submetido a uma racionalização sob o signo do valor. São figuras desta racionalização a liberação da sexualidade como valor de uso biológico, a promoção do corpo

56. Baudrillard, Jean. Op. cit., p. 183.

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erótico pela publicidade e pela moda, a manipulação tecnonarcísica do corpo e todas as reinterpretações funcionais da corporeidade. É dentro deste horizonte que o afeto é capturado, ora pela produção, ora pelo consumo". Entretanto, na descrição filosófica que faz Vattimo dessa nova realidade, em princípio niilista e menos violenta que a era da metafisica clássica (ou seja, Deus, o mundo e o eu perdem a sua transcendência, que era forte e impositiva), transparece um certo otimismo. AÍ onde Baudrillard enxerga uma repressão pacificada, sob a égide de um narcisismo dirigido, o teórico italiano vê apenas o enfraquecimento da metafisica, portanto a diminuição da violência. E assim não deixa de evocar a esperança neopragmatista na irradiação da democracia por meio de novos dispositivos técnicos ou a confiança no progresso moral como uma questão de incremento da sensibilidade humana. Igual otimismo, embora com outra argumentação e bem distinta orientação política, transparece nas proposições de Negri, para quem, no "pós-moderno" (por ele identificado com o período posterior aos anos 60), emerge a figura do comum como maneira nova de qualificação do ser, que se realizaria nas determinações da linguagem, daprodução de subjetividade e da biopolitica'". A linguagem é hoje, para ele, a ferramenta privilegiada da relação entre homem e natureza, tomando-se imanente ao cérebro e retirando as bases das ilusões metafisicas. Única forma de produção da ambiência humana, a linguagem é o modo de ser do comum (não mais uma simples forma de expressão): "Não há mercadoria que não tenha se tomado serviço, não há serviço que não seja relação, não há relação que não seja cérebro, não há cérebro que não seja cornum=". Ao mesmo tempo, a subjetividadeentendida não como algo interno, mas como "imputação de força comum produtiva, que identifica (ou seja, dá nome ao) o ator das produções lingüísticas" - é, como a linguagem, um outro modo do ser comum. O terceiro modo é a recomposição da produção de linguagem e da vida num conjunto denominado "biopolitica". Próteses lingüísticas e subjetivas aderem ao homem, levando o comum a se organizar como máquina biopolítica. Toda produção é, em última análise, comunicação.

57. Isto já é tão visível no nível das práticas sociais que, no início do governo lula (2003), o Ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, defendendo a organização de cadeias produtivas para que o Brasil possa tender a nichos de mercado, afirmou ser preciso "melhorar a imagem de produtos que agreguem emoção", o exemplo de jóias. Poro ele, "o vendo de produtos com um cunho emocional tem margens maiores que os produtos de cunho racional e devemos caminhar para produtos nos quais o compra tem apelo emocional, e o consumidor diz 'quero ter esse produto', não importa quanto custo". 58. ct. Negri, Antonio. Kairós, alma venus, mu/titudo - Nove lições ensinadas a mim mesmo. DP&A,2003. 59. Ibid., p. 110.

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Supondo possível uma transformação do mundo simultânea à sua interpretação, Negri vê a militância como uma "tecnologia do amor", com potência biopolítica. Por isto, ele insiste no arquétipo do militante político como o de uma figura histórica que, pensando e agindo, opõe-se radicalmente à velha figura do intelectual, que apenas sente e pensa. Em sua militância, ele critica qualquer forma de pensamento pós-modernista que esvazie o quadro biopolítico de suas dimensões "produtivas", definidas como toda atividade subjetiva de produção de uma fratura no enquadramento operado pelo sistema. Não mais existiria um lugar específico para a velha dialética entre capital e trabalho, já que a dominação se exerce sobre a própria capacidade abstrata de se produzir. Trata-se do "trabalho imaterial", que demanda uma mobilização inaudita das capacidades intelectuais e afetivas, como também sugerem Combes e Aspe: "Doravante, não nos é mais possível saber a partir de quando estamos 'do lado de fora' do trabalho que somos chamados a realizar. No limite, não é mais o sujeito que adere a um trabalho; mais que isso, é o trabalho que adere ao sujeito [... ]"60. Assim pode a força de trabalho se apresentar, nos termos de Negri, como um "não-lugar", isto é, uma configuração dinâmica organizada em termos circulatórios e definida num contexto biopolítico de reprodução social, suscetível de uma abertura ontológica, de uma expansão multidirecionada. Por um lado, o trabalho - baseado em conhecimento tecnológico apresenta-se como uma rede afetiva (desejante, liberada, comunicativa) de trabalhadores bem qualificados, plenamente a serviço da ordem capitalista global. Por outro lado, tentando fazer Espinosa e Nietzsche darem-se (filosoficamente) as mãos e apostando no afeto como uma potência de liberdade, Negri envereda por um projeto de resgate político da dimensão afetiva enquanto "sedimento ontológico" de lutas sociais e enquanto potência de transformação expansiva, presumidamente capaz de revalorizar "o que é comum" em termos de singularidade e universalidade. Possibilidades dessa ordem são implicitamente reconhecidas por Gorz, ao referir-se às riquezas primárias ("a fonte de onde brotam todas as riquezas", no dizer de Marx em O capital, vol. I), entendidas como recursos naturais e culturais, que estão na origem de todos os sistemas econômicos e constituem uma segunda economia não formalizável, "invisível". Diz ele:

60. Combes, Muriel & Aspe, 8ernard. Revenu garanti et biopo/ique. rial: conhecimento, valor e capital. Annablume, 2005, p. 22.

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Cf. Gorz, André. O imate-

"Sem ela, a 'primeira' economia reinante nunca poderia surgir. Sem ela, não poderia perdurar. Ela abrange todas as relações e realizações não computáveis e não remuneráveis, cuja motivação é a alegria espontânea na colaboração livre, no convívio e na doação livres. Dela resulta a capacidade de sentir, de amar, de se unir e de viver com o próprio corpo, com a natureza e com o próximo. [...] Somente nessa outra economia, que também é o outro da economia, aprendemos a humanizar a nós mesmos reciprocamente e produzir uma cultura da solidariedade e da coletividade'?" . Negri imprime a esta argumentação um acento revolucionário, que recusa a Realpolitik liberal do Estado contemporâneo em favor da aposta na força imanente dos excluídos pela nova ordem de poder. Daí a sua insistência no combate ao controle do valor, agora definido como "investimento de desejo", pela economia política. Tenta-se controlar o que não pode ser medido. O mercado e a mídia são os veículos do controle: "A convenção (isto é, o conjunto dos modos de vida produtivos e de troca) e a comunicação (isto é, o conjunto das relações interativas que formam o mercado e a consciência do mercado) ofereceriam, portanto, à economia política, a oportunidade de restringir a desmedida do afeto-valor pelo e no controle't'". É de fato o mercado, coadjuvado pela publicidade e pela mídia, que influi poderosamente na redefinição da subjetividade contemporânea, acentuando os elementos do imaginário e do desejo.

Uma nova perspectiva O trabalho teórico com o sensível implica uma nova perspectiva no campo das ciências humanas em geral e das ciências da linguagem, em particular. No primeiro caso, destaca-se a emergência de um paradigma estético no interior do círculo acadêmico da sociologia, em especial a sociologia "neoformista" (a revalorização da forma, confrontada à falência dos ideais racionalistas do Iluminismoj'", empenhada em resgatar a importância do pensamento de Georg Simmel, posto em segundo plano frente a Max Weber e Émile Durkheim por influência do funcionalismo estrutural nor-

61. Gorz, André. Op. cit., p. 57. 62. Negri, Toni. Op. cit., p. 69. 63. Pode-se chamar também essa sociologia de "vitalista", na medida em que faz constantes empréstimos oos pensamentos de Nietzsche, Bergson, mas também Deleuze e Guattari. Nesse círculo, movem-se intelectuais como Gilbert Durand, Georges Balandier, Serge Moscovici, Michel Maffesoli e outros que, quando não privilegiam autoralmente, pelo menos levam a sério os temas vinculados à anarquia da vida e ao politeísmo dos volores.

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te-americano (beatificado por Talcott Parsons), que se tomou preeminente após a Segunda Guerra Mundial. Praticante de uma descrição fenomenológica que não se deixa fixar pela rigidez racionalista do conceito, Simmel reinterpreta o conceito kantiano de "forma", deslocando-o da posição de um a priori incondicionado (modos e princípios de ordenamento de fenômenos e objetos da experiência) para a de um esquema cognitivo tensional, capaz de ordenar um campo observado, relacionando modos de ser que oscilam entre o racional e o sensível. A forma nasce da vida concreta dos sujeitos, mas pode a ela contrapor-se como um padrão interativo acabado, em nível supra- individual. Para a sociologia da forma, o dado social é algo orgânico, simultaneamente constituído por um ordenamento preexistente e pelas ações ou atitudes que se desenvolvem em efeitos de reciprocidade. A heterogeneidade da vida social não é apreendida por nenhuma estrutura forte, mas por uma coesão (evocativa do ksynon heracliteano) que transparece no esteticismo (rituais, vestuários, hábitos, etiquetas, diversões, etc.) da forma. A sociabilidade - conceito cunhado por Simmel para designar a forma espontânea da interação social, livre de conteúdos específicos - resulta da tensão entre a forma a priori e o vivido multiforme, logo é feita de interação e da dinâmica dos valores de uma individualidade qualitativa. É esta sociabilidade que enseja hoje uma revalorização cognitiva dos fatos miúdos ou anódinos da existência, do mesmo modo que a imaginarização do real-histórico, por efeito da difusão imagística da mídia eletrônica. Persegue-se, assim, uma vitalista "sociologia dos sentidos", considerando-se, como Maffesoli, que "não é o que um objeto social é, mas a maneira como ele se dá a ver que pode guiar a nossa pesquisa. Aí está resumida toda a ambição do formismo?". Para ele, o que se pode guardar das várias modulações da "forma" é que "elas insistem no fato de que as múltiplas situações da vida cotidiana se esgotam no próprio ato, se vivem no presente. E é importante que esse presente, campo específico da sociologia, depois de ter sido ocultado por muito tempo em função da ideologia prometeica, retome o lugar preeminente que lhe cabe?". Nesta perspectiva da teoria do social, adquirem importância realidades descuidadas pela tradição do pensamento ocidental, tais como a imagem e o espetáculo, que se encontram decididamente no centro da nova sociedade da informação e da comunicação, demandando uma nova atitude cognitiva.

64. Moffesoli, Michel. Lo connoisscnce ordinoire. Méridiens, 1985, p. 114. 65. tbid., p. 116.

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Mas essa nova atitude pode ser perturbada por algo já pressentido por Kierkegaard ao alertar contra o niilismo presente na automodelagem artística do experimentalismo estético: na livre expansão das faculdades criativas do sujeito, sem o peso da história, haveria um desejo onipotente e gratuito de si mesmo, no fundo uma auto-supressão da liberdade. Imediata ou reflexiva, entregue apenas a si mesma, a imaginação estética confina-se nos limites da finitude sensível, indiferente ou conformista com a ordem social. Por outro lado, essa atitude cognitiva ainda busca uma compreensão racional de um certo "irracionalismo" (os temas postos à margem pela grande sociologia das instituições e das estruturas sociais, tipificada no trabalho de pesquisadores como Talcott Parsons, Pierre Bourdieu, etc.). Outra é a postura de Baudrillard, que não se reconhece como sociólogo (manifestamente dando preferência ao viés filosófico-antropológico) por não acreditar na racionalidade do conceito novecentista de história, logo, no realismo dos diagnósticos sobre a sociedade contemporânea ou na possibilidade de que se possa hoje fazer uma verificação historicamente objetiva, não-indecidível, das coisas. Ele reencontra, assim, por outros caminhos, a mesma suspeição do pensamento construído pelo racionalismo, feito de definições prontas e acabadas. E as formas também lhe parecem ímportantes, mas como algo além da consciência e do desejo, como pura circulação simbólica das regras do jogo e dos rituais. No tocante às ciências da linguagem, em especial no seu empenho de pensar o fenômeno comunicacional, é relevante a "atitude pragmática" de Parret'", que critica a preocupação excessiva ou o unidimensionalismo das pesquisas em tomo do valor de verdade das enunciações. Trata-se na verdade de criticar o "paradigma verifuncional" em que o sujeito falante, social e comunitário, é esvaziado de suas próprias motivações e modalizações para tomar-se um comunicador ou informador, apoiado apenas na relação do discurso com as suas circunstâncias referenciais. Para um tal paradigma, que institui a comunicação como fundamento estrutural da subjetividade, toda intersubjetividade equivaleria à comunicabilidade, e toda comunicação a uma transferência de informações, sem maior atenção às expressões sensíveis da experiência vivida. O corolário deste modelo é a consolidação da informática como "espírito" da sociedade contemporânea. Qual a alternativa? Na perspectiva de Parret - que pode ser subscrita em vários de seus pontos por outros autores de linhagem pragmática, mas

66. Parret, Herman. Op. cit., passim.

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também por sociólogos atentos ao papel da imaginação e da incerteza na dinâmica cognitiva -, será preciso evitar a tendência histórica de conceber a sociedade segundo uma teoria de jogos finitos, cuja razão - apoiada no cálculo e na representação - termina sempre por ratificar uma suposta "natureza" economicista e bélica do homem. A estes jogos puramente societários, opõem-se os "jogos de cultura", que apostariam no infinito, na ampliação dos limites e, assim, na indeterminação cultural frente à determinação das elites culturais históricas. Ao invés da sociedade defrnida exclusivamente pela otimização econômica, emerge a idéia do "ser em comum", mais centrado no afeto ou na sensibilidade do que em qualquer fundamento de caráter ético-racionalista. No lugar, portanto, de uma comunidade argumentativa e consensual, produtora de normas e sentido num contexto intersubjetivo de livre discussão, emerge uma comunidade afetiva, de base estética, onde a paixão dos sujeitos mobiliza a discursividade das interações. A elevação do sensível à condição de fundamento do agir ético é precisamente a posição da biologia do conhecimento trabalhada por biólogos como Maturana e Varela 67. Partindo do ponto de vista de que a racionalidade depende de premissas aceitas apriori, ambos atribuem ao domínio afetivo essa aceitação. A preocupação da ética com o agir humano em face do problema de aceitação da alteridade desloca-se, assim, da razão substancial e supostamente inerente à livre discursividade no espaço público (Habermas) para uma intersecção do afeto ("emoção") com a linguagem. Não há praticamente nada em Maturana e Varela que não já tenha sido pensado por Simmel, Scheler, Heidegger e Wittgenstein. Os dois biólogos são principalmente epistemólogos (e não "pensadores", em sentido lato) que vêm trabalhando sistematicamente uma "teoria dos sistemas vivos", bastante próxima das abordagens neurofisiológicas por onde enveredam autores como Damásio, Block e muitos outros. Embora altamente discutível, esta conexão da biologia com fenômenos sociais é importante como sintoma de uma mudança nos padrões de compreensão da dinâmica da convivência humana. Está-se relativizando, senão se desconfiando, de todo um paradigma que, transformado em mito, vem ocupando o centro das atenções práticas e teó-

67. Cf. Maturana,

H. & Varela, F. A árvore do conhecimento.

66

Psy 11,1995.

ricas desde a segunda metade do século XX: o da comunicação. Pelo menos, a comunicação entendida como transferência de sentido ou de dados, portanto como processo de informação, a tal ponto intensificada pela materialidade tecnológica que a superabundância informacional e a racionalidade funcional tendem a dominar toda dinâmica interativa. Na hiperinformação, algo da vida parece degradar-se em função da crescente mercantilização dos tempos sociais, quando não se suscita o conhecimento proveniente da identificação e diferenciação comunitárias (onde prevalece o campo afetivo), que é o conhecimento compreensivo. Na base de uma experiência ontológica da comunicação (em termos de ciência, política e vivência), encontra-se o problema da compreensão, suscitado pela vinculação inerente ao comum. O entendimento e a explicação se obtêm por meio das interpretações que fazemos do mundo a partir de nossos habituais quadros conceituais. A compreensão, porém, fica além desses circuitos autolegitimativos, fora dos puros atos de linguagem. Assim, em vez da pura e simples comunicabilidade (pelo menos na acepção com que este termo é empregado na atual sociedade tecnológica), põese em primeiro plano a compreensibilidade como o problema da articulação dos caminhos que possibilitam toda e qualquer percepção. Isto é o que ressoa, por exemplo, na distinção heideggeriana entre linguagem e língua, ou seja, entre o ordenamento capaz de acolher todas as diferenças e a esquematização discursiva. No dizer discursivo, conseqüente a uma espécie de atração comunicativa, algo se retrai ou se cala, a linguagem, justamente para possibilitar o pensamento e o afeto, a pergunta e a resposta. Esse entendimento de linguagem não difere do que Heráclito entendia por ethos, isto é, a ambiência sensório-cognitiva (entendida por Wittgenstein como "forma de vida"), onde se estabelecem as diferenças e as aproximações constitutivas da comunidade. Pode-se resumir sustentando que, de um ponto de vista geral e pragmático, o ethos de hoje se deixa ver como a consciência atuante e objetivada de um grupo social- explicitada em costumes, hábitos, regras e valores -, onde se manifesta a compreensão histórica do sentido da existência, onde têm lugar as interpretações simbólicas do mundo e, portanto, funciona a instância de regulação das identificações individuais e coletivas. No pensamento heideggeriano, compreensão é algo mais do que "compreender alguma coisa", como ele próprio explica, "com o sentido de 'estar a cavaleiro de ... " 'estar por cima de ... " 'poder alguma coisa'. O que se pode na compreensão enquanto existencial não é uma coisa, mas o ser como

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existir. Pois na compreensão subsiste, existencialmente, o modo de ser da pré-sença enquanto poder-ser't'". Não é aqui o caso de nos estendermos na complexidade em que o pensador insere o problema da compreensão, e sim de assinalar que, para ele, a "disposição" ou "situação afetiva" (Befindlichkeit), isto é, o modo de se sentir ou se achar de determinada maneira, é um existencial que precede a própria compreensão. Mas é preciso ficar bem claro que essa disposição não pode ser entendida como um "estado afetivo" individual manifestado em emoções ou sentimentos, e sim como Grundstimmung, isto é, uma fundamental tonalidade sensível que provoca e arrasta o indivíduo num movimento capaz de ultrapassar as próprias determinações da consciência individualizada. Não se trata, pois, do sentimento que acompanha o sujeito, mas de uma potência do sensível, inseparável do pensamento e da ação no interior de um comum que, para além da dicotomia sujeito/objeto, preside à originariedade da compreensão. Uma outra maneira de apresentar esta mesma questão é o apelo à noção de experiência, tal como a desenvolve Bataille, em termos de singularidade (constitutiva ou geradora do agir) e, portanto, de uma prioridade existencial, inapreensível pelo racionalismo'". Experiência não se reduz aí às formas de apreensão (objetiva ou subjetiva) dos sujeitos, já que é um valor de originariedade da ação humana comum. E só se compreende no comum. Compreender significa agarrar a coisa com as mãos, abarcar com os braços (do latim cum-prehendere), isto é, dela não se separar, como acontece no puro entendimento (do latim in-tendere, penetrar) intelectivo, em que a razão penetra o objeto, mantendo-se à distância, para explicá-lo. No entendimento explicativo, um fenômeno particular fica subsumido a uma lei geral, enquanto na compreensão o fenômeno guarda a sua singularidade, isto é, a sua unicidade incomparável e irrepetível. O requisito essencial da compreensão é, assim, o vínculo com a coisa que se aborda, com o outro, com a pluralidade dos outros, com o mundo.

68. Heidegger, M. Ser e tempo. Parte I. Vozes, p. 198. À guisa de explicação: "pré-senço" é a palavra adotada na versão brasileira (é também possível a expressão "estar-aí") para traduzir Dasein que, em alemão, significa "existência" e que, em Heidegger, equivale a "ser-na-mundo". Não é sinônimo de "homem", mas aponta para a situação dinâmica do homem no mundo, isto é, para o seu estar essencialmente referido a possibilidades, na construção de seu modo histórico de ser. Pois bem, a compreensão é o modo de ser da pré-sença, logo, heideggerianamente, é um "existencial". Somos sempre existencialmente constituídos por uma compreensão originária ou uma precompreensão do mundo, internamente articulada por interpretação e discurso, porém manifestada como afeto. 69. Cf. Bataille, Georges. L'Expérience intérieure. Gallimard, 1992.

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A exigência do "agarrar com as mãos" põe emjogo a corporeidade, não devidamente acentuada por Heidegger. De fato, comentando um tópico de Ser e tempo - o estar-aí (Dasein) enquanto cuidado e enquanto mortal- lonas, também filósofo e discípulo de Heidegger, observa que o predicado "mortal" remete de modo imperativo à existência do corpo em toda a sua naturalidade bruta e exigente. No entanto, no texto heideggeriano, o corpo não é sequer nomeado. É como se a filosofia alemã, com sua tradição idealista (confirmadora do dualismo metafisico entre espírito e matéria), fosse de algum modo nobre demais para falar de coisas fisicas ou grosseiramente objetivas. Logo, Heidegger não teria permitido à filosofia inscrever o enunciado "eu estou com fome": a mortalidade do estar-aí seria, assim, uma mortalidade abstrata, sem fundamento concreto, na verdade, uma interpretação da interioridade do homem que pode outorgar um lugar preeminente ao sensível, mas a partir de uma espiritualidade que deixa de lado a questão corporal". Quanto ao comum (instaurador do vínculo), é precisamente esse plural manifestado na totalidade das vinculações humanas, que não se deixa definir nem como uma unidade universal abstrata, nem como uma centrifugação de diferenças. Não se trata, portanto, de um mero estar-juntos, entendido como aglomerado fisico de individualidades (por exemplo, a comunidade enquanto massa gregária substancializada), e sim da condição de possibilidade de uma vinculação compreensiva. O comum é a sintonia sensível das singularidades, capaz de produzir uma similitude harmonizadora do diverso. Uma outra maneira (e um outro vocabulário) para se encaminhar esta concepção é formular a hipótese de uma estética originária, capaz de determinar os modos de sentir de uma comunidade, uma vez que compreender é próprio da dimensão sensível, hoje sociologicamente invocada sob a égide de uma estesia generalizada. Diante dela, no limite, deixa de ter sentido qualquer binarismo, qualquer distinção radical entre razão e afeto, inteligível e sensível, uma vez que, sobre o pano de fundo comum de uma totalidade "cósmica", pensar e sentir emergem de um mesmo ato. No vigor da compreensibilidade da dimensão comum pode estar o limite para a comunicabilidade midiática, assestada para um tipo esquemático de relação societária em que comunicação se define por fala e conversa, distante, portanto, da "linguagem" e da potência que instituem a vinculação humana na pluralidade do comum. O comum que leva à compreensão é feito de uma partilha do sensível que evoca o território próprio da estética. Retomam-se, assim, algumas das

70. Cf. Jonas, Hans. Pour une éthique du futuro Payot & Rivages, 1998, p. 38-44.

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posições que marcaram as chamadas "estética da vida" e "estética da forma" - Dilthey, Herbart, Santayana, Bergson, Simmel, Unamuno, Jaspers, Ortega y Gassett e outros - ao longo do século XX. Ainda que se choquem as posições otimistas e as pessimistas quanto a uma estetização da vida social e da política, o fato é que esse tipo de argumentação introduz o afeto no debate das ciências humanas e das linguagens sobre novas configurações advindas das mutações tecnológicas e da conversão da vida social à lei do mercado. E o afeto, território próprio da estesia, revela-se um mecanismo de compreensão irredutível às verificações racionalistas da verdade. Por meio dele, divisa-se uma teoria compreensiva da comunicação, presumidamente capaz de trazer mais luz ou hipóteses mais fecundas sobre as transformações das identidades pessoais e coletivas, as modulações da política e as ambivalências do pluralismo cultural no âmbito da globalização contemporânea. No interior de uma abordagem comunicacional do discurso social (em que "comunicação" seja tomada num sentido "ontologicamente amplo" e não num esquematismo redutor), a compreensão opera buscando as regularidades lingüísticas da produção de sentido não apenas em seus aspectos empíricos e positivos, transformáveis em juízos argumentativos, mas também naqueles de caráter subjetivo e afetivo (apreensíveis por juízos reflexivos, de apreciação e avaliação) que, em inúmeros casos, precedem o discurso e o sentido. A estesia ou estética, centrada na idéia kantiana do senso comum, constituiria, portanto, o ponto de partida para a legitimação tanto do conhecimento aceitável quanto da vida boa e justa (ética) em comunidade. A já referida idéia de Vattimo sobre a comunicação pressupõe uma comunidade afetiva, mantida por um acordo de gostos em tomo do problema da partilha coletiva de vozes e sensações. Mas ainda que aparentemente partindo de Kant, ele se revela plenamente heideggeriano quando assevera que "a afetividade não é um acidente que se coloque ao lado da pura visão teórica das coisas", por ser um aspecto constitutivo da abertura humana para o mundo. Diz: "Se a situação afetiva é algo que encontramos sem dela podermos dar razão, a conclusão será que ela nos põe perante o fato de o nosso modo originário de captar e compreender o mundo ser algo cujos fundamentos nos escapam, sem ser, por outro lado, uma característica transcendental de uma razão 'pura', já que a afetividade é precisamente o que cada um de nós tem de mais profundo, de mais individual e de mais cambiante?". O problema é hoje a determinação quanto à real natureza do sensível nos processos de comunicação ou de informação. De que a comunicação é

71. Vattimo, Gianni. Introdução a Heidegger. Ed. 70, 1971, p. 39.

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um novo tipo de força produtiva, quase não há hoje mais nenhuma dúvida, uma vez que se multiplicam os reconhecimentos analíticos de que as estratégias do discurso e da sensibilidade integram decisivamente a produção e de que até mesmo a ação ética pode se definir como comunicação criativa. Mas ainda não se avaliou com profundidade a parte da dimensão afetiva nisso que se vem chamando de passagem do "sensório-motriz" (caracterizado pela intervenção energética do corpo em trabalho) ao "sensório sígnico", que se entende como o deslocamento da corporeidade ativa para o gestual de interpretação e controle sígnico (principalmente em sua forma indicial) dos dispositivos técnicos. Em outras palavras, a passagem da "siderurgia" (aqui, metáfora para a produção entendida apenas como realização da matéria em termos substancialistas) à "semiurgia". E são ponderáveis as mutações no nível da ética imediata das condutas humanas, mesmo quando possam parecer superficiais. Um exemplo é dado pelas variadas modificações do corpo humano (as escarificações, as tatuagens, os piercings); outro, pela emergência do cyborg (corpo híbrido de bios e techné, sem carne, mas investido de emoções), como sonho de fusão da máquina com a vida. Essa coalizão de arcaísmos tribais com fantasias tecnológicas delineia um novo imaginário e um novo psiquismo, em que a "natureza" revela-se tendencialmente maquínica. Por enquanto, os pesquisadores e os críticos da cultura parecem levados a oscilar entre posições otimistas e catastrofistas quanto às perspectivas humanistas numa civilização que se planetariza objetiva e subjetivamente em termos de realidade virtual. Para um crítico radical como Baudrillard, vivemos uma nova forma de terror num sistema tecnológico em que a idéia de informação suplantou a idéia de verdade, exterminando o real, o Outro e toda transcendência. O discurso otimista sustenta, em contrapartida, que a potencial idade humana para libertar-se do determinismo trivial dos artefatos (a reificação do humano e a sensibilização da "coisa", portanto, do inumano) e assumir a plenitude das condições em que se institui o novo "homem-máquina", estaria no apelo permanente à dimensão afetiva - às emoções, às paixões e aos sentimentos - como força comum que, ao lado da intelecção, constitui e integra a vida. Ainda que no bojo das novas condições de existência geradas pela ciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viver poderia impedir que a integração harmônica da máquina seja equivalente à assimilação do capital como "natureza" à consciência do homem.

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2

o EMOTIVO

E O INDICIAL NA MÍDIA

A manipulação retórica e estética das emoções pelas primeiras ditaduras tecnológicas do século XX.A difusão do espetáculo na sociedade contemporânea. A produção de relações sociais por imagens a serviço do mercado 9lobal. A tatilidade na mídia eletrônica. A comunicação indicial na televisão e na rede cibernética.

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3ão razoavelmente conhecidas, graças ao cinema e à literatura, as performances oratórias de Adolf Hitler, tidas por muitos como extraordinárias na mobilização das grandes platéias alemãs. "Nos seus discursos", relata Axel Heyst, "nós ouvimos a voz abafada da paixão sensual retirada da linguagem do amor; ele grita com ódio e voluptuosidade; um espasmo de violência e crueldade. Toda a sua gama de sons é tirada de becos sórdidos dos instintos. Fazem-nos lembrar nefandos impulsos por muito tempo reprimidos?". Esta citação consta de uma avaliação da personalidade do líder do III Reich alemão - feita em 1943, a pedido do governo norte-americano, pelo psicólogo e psicanalista Walter Langer - e se segue à observação, aliás, repetida em todos os ensaios e tratados de propaganda política, de que, para Hitler, as massas têm um caráter essencialmente feminino. Nelas predominaria o afeto sobre a razão: "O povo em sua grande maioria é tão feminino em natureza e atitude que suas atividades e pensamentos são motivados mais pelos sentimentos do que por sóbrias considerações" (Mein Kampf).

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Por isso, em seus inflamados discursos, Hitler agiria como diante de uma mulher, a princípio inseguro, nervoso e inquieto, depois dominador e bruto. Relata Langer: "Procura primeiro 'sentir' os seus ouvintes e comel(a

72. Apud Langer, Walter C. A Artenova, 1973,p. 174.

mente de Adolf Hitler -

73

O

relatório secreto da /I Guerra Mundial.

sempre com cuidado, num tom de voz normal e de maneira objetiva. À medida que prossegue, no entanto, a voz começa a elevar-se e o ritmo acelera-se. Se a reação dos ouvintes for boa, a voz toma-se mais forte e o ritmo cada vez mais acelerado. Já aí desapareceu toda a objetividade, já está simplesmente desvairado. A boca, que fora da tribuna nunca pronuncia palavras profanas, já agora deixa sair uma verdadeira torrente de blasfêmias, de insultos e de ódio. [...] A torrente constante de imundícies continua ajorrar até que tanto ele como os ouvintes encontrem-se completamente frenéticos. [...] Muita gente já comentou a respeito dos componentes sexuais de seus discursos, chegando a comparar o seu clímax com um verdadeiro orgasmo. [...] E é o próprio Hitler quem diz que 'a paixão sozinha dá àquele que ela escolhe as palavras que, como os golpes de um martelo, conseguem abrir as portas para o coração do povo. [...] Ele constrói cuidadosamente inimigos imponentes como os judeus, os bolchevistas, os capitalistas e as democracias, para depois demoli-los impiedosamente'v", As performances públicas do Führer são, em princípio, um claro exemplo do que a língua alemã designa por Schwãrmerei, isto é, um desregramento do espírito que vai dos transbordamentos da imagina i!9.ª!~~exaitã= ção característica dos fanáticos religiosos. A palavra aparece no vocabulário kantiano como uma extravagância perigosa a que se deve contrapor a razão humana. Kant a vê tãmbém como um meio de ocultar a própria ignorância: "A astúcia habitual, que pt:.rmite cobrir a sua ignorância com um~rência de saber, consiste em perguntar, como o faz o Schwãrmer: vocês com~ndem a ~rdadeira causa da força magnética, ou: vocês conhecem a matéria que exerce ações tão maravilhosas nos fenômenos elétricos?,,74 A extravagância consiste aí, evidentemente, em tirar da imaginação delirante supostos fatos verdadeiros ou científicos. As, táticas de discurso hitleristas conJl ram-se, primeiramente, como estéticas, na medida em que, como toda exaltação fanática, legitima~ dimensão sensível as suas con~ções políticas e religiosas. Depois, são em grande parte velh.Q§._artificiosP...2..u~ discmsõ, recorrentes no passado, r---principalmente . o âmbito do uso acionalista do afeto pela retórica. Esta, já vimos, se caracteriza como a arte da expressão e da persuasão empregada como técnica política, em virtude de seus eBjtos de instrumentalização e controle dos discursos. Serve para convencer, no sentido racionalista do termo, e para agradar ou bajular, o que dá bem o alcance de seu aspecto afe-

------~-73./bid.,

-.-

p. 173-174.

74. Cf. Eisler, Rudolf. Kanf-Lexikon.

Gallimard,

1994, p. 941-942.

74

~fV

tivo ou irracional- portanto, em linhas gerais, serve para comunicar idéias f" '" :::;. e enJOVÕes,prodúzindo sensações. Retórica e estética entrelaçam-se com 5Ó muita freqüêncIa. ,

r.?

Existe uma retórica dos trapos ou figuras de sentido, embelezadoras e criadoras de linguagem - portanto, uma técnica de linguagem mais voltada para a estética da obra -, assim como uma retórica dos topos, que são grades formais ou meios rnllemotécnicos para ;e descobrir as idéias do discurso, portanto, recursos a ar umentação. Razão.e.afetog] caminham juntos, como bem se vê na teoria de Aristóteles, quando ele distingue três caminhos argumentativoc ethos, path~ e log~s, sendo os dois primeiros uma matéria puramente aíetiva. Preocupada com a recepção das emoções, entretanto, a retórica arishtélica aplica-se mais à estética do público. É semelhante à mesma que, III mídia ~porânea, concretiza-se Cômo uma forma de institucionaliza:ão tecnológica da linguagem, voltada predominan-~--tement~ para o contato portanto, p;;~expectativas e a conformação psicológica das massas.

W~

·m ério da Itídia, as técnicas retóricas de ersuasão e controle das mass s;-e~ae8fbada1!ela-'propaganda política, terminaram sen o apropriadas ela ublicid~d~omercial. Mas as vellias técnicas da prop~a ) continuam ainda hoje, a (!speito seus anacronismos, em ditadores rema. nescentes, extremistas p
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